FÉ: UMA CRENÇA
ILÓGICA NO QUE NÃO SE PODE PROVAR?
JOHN R. W. STOTT
Crer é também
pensar (São Paulo: ABU, 1994), pp. 33-38.
Quisera saber se há outra virtude
cristã mais mal compreendida do que a fé. Comecemos com dois aspectos
negativos.
Primeiro, fé não é credulidade. O
americano H. L. Mencken, crítico anti-sobrenaturalista do cristianismo, certa
vez afirmou que "a fé pode ser definida concisamente como sendo uma crença
ilógica na ocorrência do improvável". Mas Mencken errou. Fé não é credulidade.
Ser crédulo é ser ingênuo, completamente desprovido de qualquer crítica, sem
discernimento, até mesmo irracional, no que crê. Porém é um grande erro supor
que a fé e a razão são incompatíveis. A fé e a visão são postas em oposição, um
à outra, nas Escrituras[1],
mas nunca a fé e a razão. Pelo contrário, a fé verdadeira é essencialmente
racional, porque se baseia no caráter e nas promessas de Deus. O crente em
Cristo é alguém cuja mente medita e se firma nessas certezas.
Em segundo lugar, fé não é
otimismo. Nisso é que parece que Norman Vicent Peale se confundiu. Muito do que
ele escreveu é certo. Sua convicção básica refere-se ao poder da mente humana.
Ele cita William James, que disse que "a maior descoberta desta geração é
saber que os homens podem mudar suas vidas alterando suas atitudes
mentais",[2] e Ralph
Waldo Emerson, "o homem é o que pensa durante todo o dia".[3]
Assim, o Dr. Peale desenvolve sua tese sobre o pensamento positivo, o qual ele
acaba por igualar (erradamente) com a fé. O que é precisamente essa "fé
pela qual advoga? Seu primeiro capítulo do livro O Poder do Pensamento
Positivo tem o significativo título de "Tenha Confiança em Si
Mesmo". No capítulo 7 ("Espere sempre o Melhor e Consiga-o") ele
faz uma sugestão que garante que dará certo. Leia o Novo Testamento, diz ele,
destaque "uma dúzia de conceitos sobre a fé, os que mais gostar", e
procure memorizá-los. Que esses conceitos de fé permeiem sua mente consciente.
"Repita-os muitas vezes." "Eles sei impregnarão em seu
subconsciente e esse processo o transformará num crente". Até aqui isto
parece ser algo promissor. Mas, espere um pouco. Quando a Bíblia se refere ao
"escudo da fé", prossegue ele, ela está ensinando uma "técnica
de força espiritual", a saber, "fé, crença, pensamento positivo, fé
em Deus, fé em outras pessoas, fé em si próprio, fé na vida. Esta é a essência
da técnica que ela ensina".[4] O
Dr. Peale prossegue citando alguns versículos maravilhosos, tais como "se
podes! Tudo é possível ao que crê";[5]
"se tiverdes fé... nada vos será impossível"[6]; e
"faça-se-vos conforme a vossa fé".[7]
Mas então ele estraga tudo, ao explicar esta último texto da seguinte maneira:
"de acordo com a fé que você tiver em si mesmo, em seu emprego, em Deus, é
o que terá e não mais do que isso"[8]
Estas citações bastam para
mostrar que o Dr. Peale aparentemente não faz nenhuma distinção entre a fé em
Deus e a fé em si mesmo. De fato, o que ele demonstra é não se preocupar
absolutamente com o objeto da fé. Ele recomenda, como parte de seu sistema de
acabar com as preocupações, que a primeira coisa a fazer todas as manhãs, ao
acordarmos e antes de nos levantarmos, é dizer em voz alta "eu
creio!" três vezes;[9]
mas ele não nos diz em que devemos estar afirmando que cremos com tanta
confiança e insistência. As últimas palavras de seu livro são simplesmente
"tenha, pois, fé, e viverá feliz".[10]
Mas fé em quê? Crer em quem? Para o Dr. Peale a fé não passa de mais uma
palavra para exprimir autoconfiança, ou um exagerado e não fundamentado
otimismo. Ouvi dizer que o Dr. Peale mudou seu ponto-de-vista depois de ter
escrito este livro, mas o livro acha-se ainda em circulação, e sendo lido. E
nesse livro parece estar bem claro que o seu pensamento positivo é, no fim das
contas, meramente um sinônimo para "fé naquilo que a gente quer que seja
verdade".
O mesmo se pode dizer com relação
ao Sr. W. Clement Stone, o filantropista e fundador de "Atitudes Mentais
Positivas". "De simples homens comuns fazemos super-homens", diz
ele, pois desenvolveu "a técnica de vendas para acabar com todas as técnicas
de vendas". Porque "você pode até mesmo vender-se a si próprio,
recitando da mesma maneira como fazem os vendedores da AMP todas as manhãs:
"estou contente, tenho saúde, sou o máximo!"[11]
Mas a fé cristã é bem diferente
do "pensamento positivo" de Peale e das "atitudes mentais
positivas" de Stone. Fé não é otimismo.
Fé é uma confiança racional, uma
confiança que, em profunda reflexão e certeza, conta com o fato de que Deus é
digno de todo crédito. Por exemplo, quando Davi e seus homens voltaram a Ziclague,
antes dos filisteus terem matado Saul na batalha, um terrível espetáculo os
aguardava. Na sua ausência os amalequitas tinham saqueado a sua aldeia,
incendiado as suas casas e levado cativas as suas mulheres e crianças. Davi e
seus homens choraram "até não terem mais forças para chorar" e então,
na sua amargura, o povo cogitou de apedrejar a Davi. Era uma crise séria, e
Davi facilmente poderia ter-se deixado cair no desespero. Mas, em vez disso,
lemos que "Davi se reanimou no Senhor seu Deus".[12]
Esta era uma fé verdadeira. Ele não fechou seus olhos aos fatos. Nem tentou
criar sua própria autoconfiança, ou dizer a si mesmo que se sentia realmente
muito bem. Não. Ele se lembrou do Senhor seu Deus, o Deus da criação, o Deus da
aliança, o Deus que prometeu ser o seu Deus e colocá-lo no trono de Israel. E à
medida em que Davi se recordava das promessas e da fidelidade de Deus, sua fé
crescia e se fortificava. Ele "se reanimou no Senhor seu Deus".
Assim, pois, a fé e o pensamento
caminham juntos, e é impossível crer sem pensar. CRER É TAMBÉM PENSAR!
O Dr. Lloyd-Jones deu-nos um
excelente exemplo neotestamentário desta verdade no comentário que fez de
Mateus 6.30 em seus Studies in the Sermon on the Mount (Estudos sobre
o Sermão da Montanha): "Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que
hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de
pequena fé?"
A fé, de acordo com o ensinamento
do nosso Senhor neste parágrafo, é basicamente o ato de pensar, e todo o
problema de quem tem uma fé pequena é não pensar. A pessoa permite que as
circunstâncias lhe oprimam... temos de dedicar mais tempo ao estudo das lições
de nosso Senhor sobre a observação e a dedução. A Bíblia está repleta de
lógica, e de forma alguma devemos pensar que a fé seja algo meramente místico.
Nós não nos sentamos simplesmente numa poltrona, permanecendo à espera de que
coisas maravilhosas nos aconteçam. Isso não é fé cristã. A fé cristã é, em sua
essência, o ato de pensar. Olhem para os pássaros, pensem neles, e façam suas
deduções. Vejam os campos, vejam os lírios silvestres, considerem essas
coisas... A fé, se quiserem, pode ser definida assim: É insistir em pensar
quando tudo parece esta determinado a nos oprimir e a nos pôr por terra,
intelectualmente falando. O problema com as pessoas de pequena fé é que elas,
ao invés de controlarem seus próprios pensamentos, os seus pensamentos é que
são controlados por alguma circunstância e, como se diz, elas passam a rodar em
círculos. Isso é a essências da preocupação... Isso não é pensamento; isso é
ausência completa de pensamentos, é não pensar.[13]
Antes de deixar este assunto, que
trata do que compete à mente na fé cristã, gostaria tão somente de abordar as
duas ordenanças do Evangelho: o batismo e a ceia do Senhor. Pois ambas são
símbolos cheios de significado, destinados a trazer bênçãos aos cristãos, despertando-lhe
a fé nas verdades que simbolizam. Consideremos a ceia do Senhor, por exemplo.
Em seu aspecto mais simples, é uma visível dramatização da morte do Salvador
pelos pecadores. É uma recordação racional daquele evento. Nossas mentes têm
que trabalhar em torno do seu significado e apropriar-se da certeza que nos
oferece. O próprio Cristo fala-nos através do pão e do vinho. "Morri por
vós", diz ele, e ao recebermos sua palavra, ela deve trazer a paz a nossos
corações culposos.
Desta forma, Thomas Cranmer
escreveu que a ceia do Senhor "foi ordenada com este propósito, que toda
pessoa dela participando, no comer e no beber, se lembre de que Cristo morreu a
seu favor, e exercite sua fé, confortando-se na lembrança dos benefícios que
Cristo lhe propiciou".[14]
A segurança cristã é a
"plena certeza da fé".[15] E
se a certeza decorre da fé, a fé decorre do conhecimento, do seguro
conhecimento de Cristo e do Evangelho. Como o expressou o bispo J.C. Ryle:
"Uma grande parte de nossas dúvidas e de nosso temores provém de sombrias
percepções do que seja a real natureza do Evangelho de Cristo... a raiz de uma
religião feliz é um claro, preciso e bem definido conhecimento de Jesus
Cristo."[16]
[1] 2 Coríntios 5.7.
[2] Norman Vicent Peale, The Power
of Positive Thinking (O Poder do Pensamento Positivo) - Tadworth
World's Work, 1953, p. 220.
[4] Ibid.,
pp. 118, 119.
[5]
Marcos 9.23.
[6]
Mateus 17.20.
[7]
Mateus 9.29.
[8]
Peale, p. 126.
[9] Ibid.,
p. 169.
[10] Ibid.,
p. 302.
[11]
De uma entrevista com Adam Raphael no Guardian Weekly, 20 de março de
1971.
[12] 1 Samuel 30.16.
[13] D. Marty Lloyd-Jones: Studies in
the Sermon on the Mount (Grand Rapids, Eerdmans, 1960), II, 129-130.
[14] Thomas Cranmer: On the Lord's
Supper (edição de Parker Society, 1844), p. 352.
[15] Hebreus 10.22.
[16] J. C. Ryle: Espository Thoughts
on the Gospels (Grand Rapids, Zondervan, 1955), IV, 321, 80.
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