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sábado, 21 de junho de 2014

A revelação da justiça de Deus


Fonte: STOTT, John. A Mensagem de Romanos. Trad. Silêda e Marcos D. S. Steuernagel. 1ed. São Paulo: ABU Ed., 2000. 528p.; pp. 128-133



O trecho abaixo foi transcrito por Charles L. Grimm
Brasília, 24 de julho de 2003


            3:25 – 4:25
         8. A revelação da justiça de Deus

            [...]
           
     
        b. A base de nossa justificação: Cristo e sua cruz

[...] Aquilo que Deus fez mediante a cruz, isto é, mediante a morte do seu Filho em nosso lugar, Paulo explica através de três expressões deveras significativas. ... As palavras-chave são redenção (apolytrõsis), propiciação (hilastêrion)  e  demonstração (endeixis).  Todas as três se referem, não ao que acontece agora, enquanto o evangelho esta sendo  pregado, mas ao que aconteceu de uma vez por todas em Cristo e através dele na cruz, sendo a expressão seu sangue uma clara referência à sua morte sacrificial. Associadas à cruz, portanto, vemos uma redenção dos pecadores, uma propiciação da ira de Deus e uma demonstração de sua justiça.      


(i)                 Redenção

 A primeira palavra é apolytrõsis, isto é, redenção.  É um termo comercial emprestado dos mercados, da mesma forma que “justificação” é um termo legal emprestado dos tribunais. No Antigo Testamento ela era usada para escravos que eram comprados para serem libertados; dizia-se que eles haviam sido “remidos”.24 O termo também era usado metaforicamente com referência ao povo de Israel, que foi “remido” do cativeiro, primeiro no Egito,25 depois na Babilônia,26 e em seguida restaurado à sua própria terra. Nós, de igual maneira, éramos escravos ou cativos, presas do nosso pecado e da culpa e completamente incapazes de liberta-nos. Mas Jesus Cristo nos “redimiu”, nos comprou e libertou-nos do cativeiro, derramando, como preço, pelo resgate, o seu próprio sangue. Ele mesmo dissera que o propósito de sua vinda era para “dar a sua vida em resgate por muitos”.27 E agora, em conseqüência de sua aquisição ou “salvamento por resgate”,28 nós pertencemos a ele.

(ii)               Propiciação

A segunda palavra é hilastêrion, ou seja, propiciação. Muitos cristãos sentem-se envergonhados ou até chocados com esta palavra, porque propiciação significa o ato de aplacar a ira divina, ou de tornar Deus propício. E, em se tratando de Deus, parece-lhes indigno dar-lhe um conceito como este (mais pagão do que cristão), o que pressupõe que ele fica com raiva e precisa ser apaziguado. Daí a proposta de duas outras maneiras possíveis de se entender hilastêrion. A primeira é traduzir a palavra como “propiciatório”, referindo-se à tampa de ouro da arca da aliança que ficava no Santo dos Santos, no templo. É geralmente este o significado da palavra na Septuaginta+, e é também o que ela significa na sua única outra ocorrência no Novo Testamento.29  Já que, no Dia da Expiação, o sangue do sacrifício era salpicado sobre a tampa da arca, o chamado “propiciatório”, sugere-se então que o próprio Jesus seria o “propiciatório” onde Deus e os pecadores são reconciliados.30 Aqueles que sustentam este ponto de vista tendem a entender o verbo protithêmi (apresentou) como “expôs” (BJ)i ou “dispôs publicamente” (BAGD)ii, para indicar que, embora o propiciatório estivesse escondido dos olhos humanos pelo véu, “Deus expôs publicamente o Senhor Jesus Cristo, aos olhos do universo inteligente...”, 31, como o caminho da salvação. Tanto Lutero quanto Calvino* acreditavam que “propiciatório” seria a tradução correta, e outros seguiram seu exemplo.


Mas os argumentos contrários parecem ser conclusivos. Em primeiro lugar, se com hilastêrion Paulo quisesse referir-se à tampa da arca ou “propiciatório”, teria inevitavelmente usado com ela o artigo definido. E, depois, o conceito é incongruente em Romanos, pois esta carta, ao contrário de Hebreus, não se encontra na “esfera do simbolismo levítico”.32 Em terceiro lugar, a metáfora seria confusa e até mesmo contraditória, já que ela representaria Jesus com sendo concomitantemente a vítima cujo  sangue foi derramado e aspergido, e o lugar onde se aplicaria este sangue. Em quarto lugar, o sentimento de dívida de Paulo para com o Cristo crucificado era tão profundo que ele dificilmente o teria comparado a uma “peça inanimada da mobília do templo”.33
Uma segunda possibilidade de tradução para hilastêrion é “uma expiação”, (RSV)iii, o argumento para tal é que, enquanto que no grego secular o verbo hilaskomai significa “aplacar”(um deus ou um ser humano),  na Septuaginta o objeto deste verbo não é Deus, mas o pecado. Portanto, o seu significado não seria “propiciar” Deus (isto é, torna-lo propício, desviar sua ira) mas sim “expiar” o pecado, isto é, anular o pecado ou acabar com a profanação. C.H. Dodd, a quem geralmente se associa esta posição e que, como editor e tradutor da Bíblia, evidentemente influenciou outros tradutores nesta direção, escreveu que os atos expiatórios “tinham como que o valor, digamos, de um desinfetante”.34 Assim, a versão da BLHiv diz que “Deus ofereceu Cristo como sacrifício para que, pela sua morte na cruz, Cristo se tornasse o meio de as pessoas receberem o perdão dos pecados”.
A principal razão pela qual estas opções não são satisfatórias e pela qual é necessária uma referência a propiciação e o contexto. Nestes versículos Paulo descreve a solução de Deus para a condição humana; o problema não é só o pecado, mas também a ira de Deus sobre o pecado (1.18; 2.5; 3.5). E onde quer que exista a ira de Deus existe também a necessidade de impedir que ela se manifeste. Não deveríamos ter medo de usar a palavra “propiciação” em relação à cruz, tanto quanto deveríamos deixar de usar a palavra “ira” em relação a Deus. Em vez disto, deveríamos lutar para resgatar o uso desta linguagem mostrando que a doutrina cristã da propiciação é completamente diferente dos conceitos supersticiosos pagãos ou animistas. Tanto a necessidade como o autor e a natureza da propiciação cristã são bem diferentes. 
Vamos primeiro à necessidade. Por que uma propiciação seria necessária? Resposta pagã é: porque os deuses são caprichosos, mal-humorados e sujeitos a acessos de ira. A resposta cristã é: porque a ira santa de Deus está voltada contra o mal. Quando se trata da ira de Deus, não tem esta história de falta de princípios, imprevisibilidade ou perda de controle; a única coisa que a provoca é o mal.
Agora vamos ao autor. Quem é o responsável pela propiciação? A resposta pagã é que somos nós. Nós ofendemos os deuses; portanto devemos agradá-los. Já a reposta cristã é que nós não podemos aplacar a justa indignação de Deus. Não há como fazê-lo por nossos próprios meios. Mas Deus, por amar-nos sem que o merecêssemos, fez por nós o que nunca poderíamos fazer sozinhos. João escreveu semelhantemente: “... Deus... nos amou e enviou o seu Filho como propiciação (hilasmos) por nossos pecados”.35 O amor, a idéia, o  propósito, a iniciativa, a ação e a dádiva foram todos de Deus.
E, finalmente, a natureza. Como se conseguiu a propiciação? Em que reside o sacrifício da propiciação? A resposta pagã é que é preciso subornar os deuses com doses e oferendas, vegetais, animais e até sacrifícios humanos. O sistema sacrifical do Antigo Testamento era completamente diferente, já que todos sabiam que o próprio Deus havia “dado” os sacrifícios para  o seu povo fazer a expiação.36 E isso está inegavelmente claro na propiciação cristã, pois Deus deu seu próprio Filho para morrer em nosso lugar, e, ao dar seu Filho, deu-se ele mesmo por nós (5.8; 8.32).
Em suma, seria difícil exagerar no que diz respeito às diferenças entre a visão cristã e a pagã de propiciação. Na perspectiva pagã, os seres humanos tentam, através de suas ofertas desprezíveis, aplacar o mau humor de suas divindades enfurecidas. De acordo com a revelação cristã, o próprio amor incomparável de Deus aplacou a sua própria ira santa ao dar seu próprio Filho amado, que tomou o nosso lugar, assumiu os nossos pecados e morreu a nossa morte. Assim fazendo, Deus mesmo entregou a si mesmo para salvar-nos dele mesmo.
Este é o justo fundamento em que se baseia a justa justiça de Deus para justificar os injustos sem comprometer a sua justiça. Charles Cranfield expressou isso com cautela e eloqüência:

Deus, porque em sua misericórdia desejava perdoar os homens pecadores, e por ser verdadeiramente misericordioso, desejoso de perdoá-los – isto é, sem de maneira alguma desconsiderar o seu pecado –  propôs-se voltar contra si mesmo, na pessoa do seu Filho, todo o peso daquela justa ira que eles mereciam.37 

                        O professor Cranfield volta a este assunto no seu ensaio final sobre “A Morte e Ressurreição de Jesus Cristo”. Conforme o seu argumento, o propósito de Deus ao fazer da morte de Jesus Cristo um sacrifício de propiciação foi para “que ele pudesse justificar os pecados justamente, isto é, de uma maneira tal que fosse inteiramente digna do seu caráter de Deus verdadeiramente amoroso e eterno”. Pois, caso ele se limitasse a meramente perdoar os pecados deles, estaria com isso “comprometido com a mentira de que a maldade moral não importa e, dessa forma, estaria violando sua própria verdade e zombando dos homens, proporcionando-lhes uma certeza vazia e mentirosa que eles, na sua total humanidade, acabariam descobrindo ser uma miserável fraude.”38 

(iii)             Demonstração

Até aqui nós vimos duas das palavras usadas por Paulo para descrever a cruz; são elas apolytrõsis (“redenção”) e hilastêrion (“sacrifício de propiciação”). Vamos agora à terceira palavra, que é endeixis (“demonstração”). Afinal, a cruz foi uma demonstração ou revelação pública assim como uma conquista. Além de concretizar a propiciação de Deus e a redenção dos pecadores, ela também vindicou a justiça de Deus: Ele fez isso para demonstrar a sua justiça ... (25b); ... isso para demonstrar sua justiça ... (26a). Para podermos entendermos a fora que tomou esta demonstração da justiça de Deus, precisamos perceber o contraste deliberado que Paulo estabelece entre os pecados anteriormente cometidos, os quais em sua tolerância,  havia deixado impunes (25b), e, o tempo presente, no qual Deus agiu afim de ser justo e justificador (26a). É um contraste entre o passado e o presente, entre a tolerância divina que adiou o julgamento e a justiça divina que o exigia, entre “deixar impunes os pecados anteriores cometidos” (o que faria Deus parecer injusto) e a punição deles na cruz (pela qual Deus demonstrou a sua justiça).
            Isto é, Deus deixou impunes os pecados de gerações passadas, permitindo que as nações seguissem seus próprios caminhos e não levando em consideração a sua ignorância39, não porque houvesse qualquer injustiça de sua parte, ou por uma atitude de conivência com o mal, mas sim em virtude de sua paciência (BLH), e só porque tinha a firme intenção de, na plenitude dos tempos, dar a estes pecados o devido castigo por meio da morte do seu próprio Filho. Essa era a única maneira pela qual ele podia, ao mesmo tempo, ser justo, demonstrar a sua justiça e ser justificador daquele que tem fé em Jesus (26b). Tanto a justiça (o atributo divino) como a justificação (atividade divina) seriam impossíveis sem a cruz.
            Aqui, portanto, estão os três termos técnicos que Paulo utiliza (apolytrõsis, hilastêrion  e endeixis)  para explicar o que Deus fez na cruz de Cristo e por meio dela: ele redimiu seu povo, aplacou a sua ira e demonstrou a sua justificação. De fato, estas três conquistas fazem parte de um todo. Através da morte expiatória e substitutiva do seu Filho, Deus aplacou a sua própria ira, de forma a redimir-nos e justificar-nos e, ao mesmo tempo, demonstrar sua justiça. Só nos resta maravilhar-nos diante da sabedoria, santidade, amor e misericórdia e Deus e prostrar-nos diante dele em humilde adoração. A cruz deveria ser o bastante para quebrantar o mais duro e derreter o mais insensível dos corações.
            Agora, que vimos que a origem de nossa justificação é a graça de Deus e que ela se baseia na cruz de Cristo, vamos considerar o meio pelo qual somos justificados.  [...]”






24 P. ex. Lv 25.47ss.
25 Êx 6.6
26 Is 43.1.
27 Mc 10.45.
28 Moule (1894), p.92.
29 Hb 9.5.
30 Cf. Ex 25.22.
31 Hodge, p.93.
32 Godet, p.151.
33 Cranfield, vol.I, p.215. Nygren usa uma expressão semelhante na p. 156.
34 Dodd, p.54.
35 1 Jo 4.10.
36 P. ex. Lv 17.11.
37 Cranfield, vol. I, p. 217; cf.  vol II, p. 828.
38 Cranfield, vol. II, p. 827.
39 At 14.16; 17.30.



+ LXX – {Septuaginta} Antigo Testamento em grego, de acordo com a Septuaginta, século III a.C – fonte: “Principais abreviaturas”, página 12 deste comentário. Nota particular: há controvérsias sobre a datação e origem desta tradução grega segundo alguns críticos dos quais não recordo o nome  – Charles L. Grimm

i BJ - A Bíblia de Jerusalém (São Paulo, Edições Paulinas, 1973) – fonte: “Principais abreviaturas”, página 12 deste comentário.

ii BAGD – Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, traduzido e adaptado por William F. Arndt e F. Wilbur Gringrich e Frederick W. Danker a partir da 5 ed., 1958 (University of Chicago Press, 1979) – fonte: “Principais abreviaturas”, página 12 deste comentário.

* A posição de Calvino, segundo o seu comentário de Romanos,  capítulo 3, verso 25:

                25. A quem Deus apresentou como propiciação. O verbo grego protiqenai   {protítene}, às vezes significa predeterminar e às vezes apresentar. Se porventura preferirmos o primeiro significado, então Paulo está a referir-se à graciosa misericórdia de Deus em haver designado Cristo como nosso mediador a fim de reconciliar o Pai conosco por meio do sacrifício de sua morte. Não é um encômio comum da graça de Deus o fato de que, de seu próprio beneplácito, ele encontrou uma forma pela qual pudesse remover nossa maldição. Na verdade, tudo indica que a presente passagem concorda com aquela que se acha em João 3.16: “Deus amou o mundo de tal maneira, que deu seu Filho unigênito.” Entretanto, se adotarmos o segundo significado o sentido será o mesmo, a saber: que, a seu próprio tempo, Deus o apresentou, a quem designou Mediador. Há, creio eu, na palavra ilasthrion  {hilastêrion}, como já disse, uma alusão ao antigo propiciatório, pois o apóstolo nos informa que em Cristo foi exibido em realidade, aquilo que, para os judeus, foi dado figuradamente. Entretanto, visto que o outro ponto de vista não pode ser descartado, caso o leitor prefira aceitar o sentido mais simples, então deixarei a questão em aberto. O significado específico do apóstolo, aqui, se faz ainda mais evidente se atentarmos para o que ele diz, ou, seja: que Deus, à parte de Cristo, está sempre irado conosco, e que somos reconciliados com ele quando somos aceitos por meio de sua justiça. Deus não nos odeia na qualidade de feituras suas, ou , seja, pelo fato de nos ter criado como seres viventes, mas o que ele odeia em nós é a impureza, a qual extinguiu a luz de sua imagem. Quando esta [impureza] é removida, então ele nos ama e nos abraça como feituras suas, próprias e puras.   
CALVINO, João. Romanos. Trad. Valter Graciano Martins. 2 ed. São Paulo, Edições Paracletos, 2001, pp. 136-137.      As chaves “{ }” são adições de minha lavra, bem como também esta transcrição do comentário de Calvino que não consta no comentário de John Stott – Charles L. Grimm.

iii RSV – Revised Standard Version –  Creio que por um lapso esta abreviatura foi esquecida nas “Principais abreviaturas” do presente comentário. Charles L. Grimm

iv BLH – A Bíblia Sagrada – Tradução na Linguagem de Hoje (São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, 1988).

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