Extraído: Batismo e Plenitude do Espirito Santo - Ed. Vida Nova.
Em nosso estudo do Espírito Santo, até agora nos
concentramos em sua atuação no crente individual. O cristão recebe primeiro o
"dom" ou
"batismo" do Espírito, no começo da sua vida nova,
e depois procura apropriar-se, de maneira contínua e crescente, da plenitude do
Espírito,
resultando na manifestação e amadurecimento do fruto do
Espírito em sua vida. Os dons do Espírito também são concedidos individualmente
aos
crentes, mas sua finalidade é o crescimento sadio da Igreja.
Quando os escritores do Novo Testamento falam sobre a
Igreja, com freqüência eles contrastam sua unidade com sua diversidade. As duas
características são obra do Espírito Santo. A Igreja é uma,
porque o Espírito habita em todos os crentes. A Igreja é multifacetada, porque
o Espírito
distribui diferentes dons aos crentes. De forma'que o dom do
Espírito (que Deus nos dá) cria a unidade da Igreja, e os dons do Espírito (que
o
Espírito dá) diversifica o ministério da Igreja. A mesma
verdade pode ser expressa em relação à graça de Deus. A Igreja deve sua unidade
à charis
(graça), e sua diversidade aos charismata (dons da graça).
Encontramos quatro listas de dons no Novo Testamento. A mais
conhecida está em 1 Coríntios 12. Igualmente importante é a de Rm 12.3-8.
Listas
mais curtas estão em Ef 4.7-12 e 1 Pe 4.10,11. Precisamos
tentar descobrir, a partir desta e outras passagens, a natureza dos dons
espirituais,
quantos são, qual é sua relação com os talentos naturais, se
são todos miraculosos, quais dons são dados hoje, qual é seu alcance (a quem
eles
são concedidos), sua origem (de onde eles vêm) e seu
propósito (para que eles são dados).
A Natureza dos Dons Espirituais
O melhor ponto de partida que podemos escolher é 1 Coríntios
12.4-é, onde Paulo declara:
"Ora, os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo. E
também há diversidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade
nas
realizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em
todos".
O objetivo do apóstolo é enfatizar que, mesmo os dons sendo
diversos, há um só Doador. Ele afirma esta verdade três vezes, cada vez
relacionando os dons a uma outra Pessoa da Trindade ("o
mesmo Espírito", "o mesmo Senhor", "o mesmo Deus").
Ele também usa três palavras
diferentes para os dons. Primeiro (v.4) eles são charismata,
dons da graça de Deus. Depois, (v.5) eles são diakoniai, maneiras de servir. Em
terceiro lugar, (v.é) eles são energêmata, energias,
atividades ou poderes, que o mesmo Deus "energiza" ou
"inspira" (energõn) em todos. E há
"diversidade" ou "porções" (diaireseis)
de cada grupo. Juntando estas três palavras, talvez possamos definir dons
espirituais como "certas
capacidades, concedidas pela graça e poder de Deus, que
habilitam pessoas para serviços específicos e correspondentes". Um dom
espiritual é,
portanto, não a capacidade em si, nem um ministério ou
função propriamente dito, mas a capacidade que qualifica uma pessoa para um
ministério.
Em termos simples, ele pode ser considerado, ou o dom e o
trabalho em que é exercido, ou o trabalho e o dom com que é exercido.
Agora temos condições de fazer algumas perguntas em relação
a estes dons, que aumentarão nosso conhecimento da sua natureza.
Quantos Dons Existem?
O interesse de alguns cristãos parece estar limitado
principalmente a três dons, que são "línguas, profecia e curas".
Entretanto, é óbvio que há mais
dons que este trio empolgante. Recentemente vi um livro e um
livreto, ambos intitulados The Nine Gifts of lhe Spirit ("Os Nove Dons do
Espírito"). É
louvável que a motivação do autor em limitar os dons a nove
seja traçar um paralelo com o fruto do Espírito, que tem nove partes, mas é um
erro
querer restringir o número desta maneira. É verdade que na
primeira lista, registrada no começo de 1 Coríntios aparecem nove dons. Também
é
verdade que a segunda lista, no fim do mesmo capítulo,
também abrange nove, mas somente cinco destes coincidem com a primeira lista.
De forma
que, mesmo em 1 Coríntios, são pelo menos 13 dons. Depois há
uma lista de sete dons em Romanos 12 (dos quais cinco não ocorrem em nenhuma
lista de 1 Coríntios 12) e outra lista, de cinco dons, em
Efésios 4 (dos quais dois são novos), além de outros dois dons citados em 1
Pedro 4, um
dos quais ("se alguém fala") ainda não recebera
menção específica antes. Ao compararmos as listas, nem sempre está claro quais
dons são
idênticos, mas é quase certo que, no conjunto, o Novo
Testamento faça referência a vinte ou mais dons diferentes.
Além disto, não temos motivos para crer que estas cinco
listas somadas formam uma lista completa de todos os dons espirituais. Já
mencionamos
que nas duas listas que aparecem no mesmo capítulo (1 Co 12)
somente cinco dons são repetidos, de maneira que cada uma tem quatro dons
novos, além dos dois inéditos em Efésios, que não estão em
nenhuma das duas listas de 1 Coríntios. Nenhum dom aparece em todas as cinco
listas,
e treze dons estão em apenas uma das cinco listas cada um. A
menção dos dons parece obedecer somente ao acaso, como que para enfatizar que
cada lista é uma seleção limitada de um total muito maior.
Acrescente-se ainda que é verdade que sabemos, pela história
e pela experiência de dons que o Espírito Santo concedeu a algumas pessoas, que
não constam de nenhuma lista bíblica. Será que a capacidade
de Charles Wesley de escrever hinos não era tanto um carisma quanto o dom de
evangelista de seu irmão, John? E o que dizer de cantores
evangélicos, poetas cristãos, e homens e mulheres com dons espirituais
destacados (não
consigo descreve-los com nenhuma outra expressão) na
literatura cristã, na composição musical, no rádio e na televisão? Repito que
somente uma
das cinco listas inclui "evangelistas". Será que
este dom é abrangente, concedido a todos que labutam em algum tipo de
evangelização? Ou será
que nosso conhecimento da variedade de dons evangelísticos
de Deus não sugere que pode haver o dom da evangelização de massas, o da
evangelização nos lares, o da evangelização por amizade, o
da evangelização pelo ensino, o da evangelização pela literatura, o da
evangelização de
crianças, e muitos outros?
Aventuro-me a sugerir que com os dons espirituais ocorre o
mesmo que acontece com as experiências mais profundas: nosso Deus é um Deus de
uma diversidade rica e colorida. Nossa tendência humana é de
tentar limitá-lo em fronteiras arbitrárias que inventamos, para
"captá-lo" e criar
estereótipos inflexíveis de experiência e ministério.
Todavia, o Deus da criação fez uma variedade praticamente infindável de criaturas
fascinantes e
mesmo entre os seres humanos há um quadro complexo de raças
e temperamentos. A Escritura deixa claro que o Deus da redenção é o mesmo. Em
um caso sua sabedoria salvadora é chamada de
"multiforme" (Ef 3.10 -polupoikilos). A mesma palavra -sem o prefixo
-é usada para sua graça na
distribuição dos dons espirituais. Somos incentivados a
exercer os dons que recebemos, "como bons despenseiros da multiforme graça
de Deus" (1
Pe 4.10; poikilos é "multiforme" ou
"mesclada"; a BLH traz: "Sejam bons administradores dos
diferentes dons que receberam de Deus"). A palavra era
usada para se referir a mármore, tecidos bordados e tapetes
orientais. A graça de Deus é como uma tapeçaria detalhada, e a rica diversidade
dos
dons espirituais é como os diversos fios de muitas cores que
são entrelaçados para formar a beleza do conjunto.
Como resposta à nossa pergunta inicial: "Quantos dons
diferentes existem?", creio que devemos dizer: "O Novo Testamento
especifica pelo menos
vinte, e o Deus vivo que ama a diversidade e é um doador
generoso pode muito bem conceder muito, muito mais do que isto". Paulo
afirma isto,
repetindo com ênfase, ao falar do assunto, que, em contraste
com o único Espírito, há "dons diversos", "diversidade nos
serviços" e "diversidade
nas realizações" (1 Co 12.4-6).
A Relação Entre Dons Espirituais e Talentos Naturais
Que relação há entre dons espirituais e talentos naturais?
Algumas poucas pessoas responderão Imediatamente: "Nenhuma", outras
têm falado e
escrito como se não houvesse diferença digna de nota entre
eles. Parece-me que estas duas posições são extremadas. Deve haver alguma
diferença, na verdade uma diferença clara, porque o Deus da
criação, por um lado, em sua providência dá talentos a todos os homens e
mulheres
(tanto que falamos que algumas pessoas têm um
"dom" artístico ou um "dom" para música, ou têm uma
personalidade multo "dotada") e, por outro,
o Deus da nova criação, a Igreja, confere "dons
espirituais" somente às pessoas redimidas. São os dons espirituais que
diferenciam os membros do
Corpo de Cristo, pois cada membro do Corpo tem um dom ou
função. Mesmo assim, devemos ter cautela em deduzir disto que não há nenhum
vínculo entre dons e talentos. Diversas razões devem
levar-nos a pensar.
A primeira é que o mesmo Deus é o Deus da criação e da nova
criação, e ele opera sua vontade perfeita através das duas. Esta vontade divina
é
eterna. Deus disse a Jeremias, por ocasião do seu chamado ao
ofício profético: "Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te
conheci, e
antes que saísses da madre, te consagrei e te constituir
profeta às nações" (Jr 1.5). Paulo tinha a mesma convicção a respeito de
si e de seu
chamado para ser apóstolo. O Deus que lhe revelou seu Filho
foi o mesmo que "me separou antes de eu nascer e me chamou pela sua
graça" (GI
1.15). Observe que os dois versículos contém mais que uma
referência ao tempo, isto é, antes do nascimento de Jeremias e Paulo, Deus
sabia o
que lhes aconteceria. Afirma-se que já antes de eles
nascerem Deus os tinha consagrado ou separado para o ministério especial para o
qual ele
haveria de chamá-los depois. É certo, então, que não podemos
dizer que não havia uma ligação entre as duas partes da sua vida. Será que não
combina melhor com o Deus da Bíblia concluir que ele os
capacitou antes de chamá-los (um condicionamento genético, dínamos
modernamente), o
que se manifestou e pôde ser usado somente depois? Deus
esteve ativo nas duas partes da sua vida, e combinou ambas de maneira perfeita.
De
modo semelhante todos os escritores bíblicos foram
preparados antes pela providência de Deus em termos de temperamento, educação e
experiência, para depois serem Inspirados pelo Espírito
Santo para comunicar uma mensagem totalmente adequada ao tipo de pessoa que
eram.
Se alguém objetar que o que valeu para profetas e apóstolos
não vale necessariamente para os cristãos comuns de hoje, eu responderia que a
Bíblia sugere o oposto. O plano gracioso de Deus para cada
um de nós é eterno. Ele foi imaginado e até "dado em Cristo Jesus antes
dos tempos
eternos" (2 Tm 1.9); Deus nos escolheu para que
fôssemos santos e nos destinou para que fôssemos seus filhos através de Jesus
Cristo "antes da
fundação do mundo" (Ef 1.4,5); e as boas obras para as
quais fomos recriados em Cristo são exatamente aquelas que "Deus de
antemão preparou "
(Ef 2.10). Esta verdade fundamental de que Deus planejou o
fim desde o começo, deve advertir-nos contra concluir com muita rapidez em
favor de
uma descontinuidade entre natureza e graça, entre nossa vida
pré e pós-conversão.
Há uma outra razão para crermos em um vínculo entre dons
naturais e espirituais. Diversos charismata, além de não serem milagrosos, são
claramente mundanos. São dons espirituais de natureza
material. Talvez os exemplos mais claros sejam os três últimos da lista de
Paulo em Rm 12:
':..O que contribui, com liberalidade; o que preside, com
diligência; quem "exerce misericórdia, com alegria" (12.8).
Não pode haver dúvida de que estes três fazem parte da lista
de charismata. A própria palavra consta do inicio do versículo é. A lista toda
faz
parte da metáfora "um corpo -muitos membros" (vv.
4,5), como em 1 Coríntios 12. Todos os sete dons da lista de Romanos 12 são
apresentados de
uma maneira quase idêntica.
Então, do que falam estes três dons? O intermediário dos
três é ambíguo no grego, podendo significar tanto "aquele que ajuda"
como "que tem
autoridade" (BLH) ou "quem lidera"; neste
sentido é usado para os líderes da igreja e presbíteros em 1 Ts 5.12 e 1 T m
5.17. Quanto aos outros dois
dons não há dúvidas. Um ("o que contribui") se
refere a dar dinheiro, e é usado especificamente em Ef 4.28 para expressar a
doação "ao
necessitado"; o outro é "quem exerce
misericórdia". Acontece que descrentes podem, igualmente, dar dinheiro a
pessoas necessitadas e exercer
misericórdia, e o fazem. Então, em que sentido as duas
atitudes podem ser consideradas "dons espirituais" concedidos por
Deus exclusivamente aos
seus filhos? É, no mínimo, improvável que o primeiro destes
dons seja uma chuva de dinheiro repentina, depois da conversão! Pelo contrário,
creio
que devemos concordar que os recursos (o dinheiro para dar,
a força para servir) já estavam nestas pessoas antes de sua conversão. O que é
novo, que transforma sua capacidade natural em um dom
espiritual, deve estar na área do seu objetivo (as causas que eles servem e
para que
dão) e da sua motivação (os incentivos que os orientam).
Pelo menos é nisto que Paulo põe a ênfase. Ele diz que não deve haver uma
atitude
indisposta e relutante. Quem dá dinheiro deve exercer seu dom
"com liberalidade" ("generosidade", BLH), e quem exerce
misericórdia, "com alegria".
Um vínculo semelhante entre talentos naturais existentes
antes da conversão e dons espirituais presentes após a conversão, pode existir
também
entre dois dos charismata anteriores que Paulo menciona em
Romanos 12, que são "o que ensina" (v.7) e "o que exorta"
(v.8). É óbvio o que
siginifica "ensi- nar". O verbo
"exortar" (parakaleõ), por sua vez, tem diversos significados, que
vão desde "pedir" e "suplicar" até "incentivar",
"confortar" e "consolar". Os dois verbos
podem estar se referindo a diferentes aspectos do ministério público da
palavra, de um lado a instrução e
de outro a exortação. A "exortação"
(paraklê"- sis) pode, certamente, ser dada em discurso formal (At 13.15),
ou por escrito (Hb 13.22). Mesmo
assim, paraklesis é um conceito mais amplo que inclui o tipo
de incentivo e conforto que a amizade, interesse e amor pessoal podem dar.
Acontece
que tanto a instrução como incentivo podem ser dados por
pessoas , não-cristãs. No mundo secular encontramos muitas pessoas que são
(como
dizemos) "professores natos", e outras cujo grande
dom é sua compreensão, disponibilidade, sensibilidade, em resultado do que elas
reanimam as
pessoas e as incentivam em seu caminho. Então, qual pode ser
a diferença entre professores e conselheiros não-cristãos, por um lado e
cristãos
com estes dons espirituais, por outro?
Em vista do que foi escrito acima sobre o Deus da natureza e
da graça, a priori não é improvável que Deus dê o dom espiritual do ensino a um
crente que, antes de converter-se, não conseguia
comunicar-se, ou o dom espiritual do aconselhamento a um irmão ou irmã que é
antipático ou
rude por temperamento? Isto não seria impossível para Deus.
Mas não estaria mais em harmonia com o Deus da Bíblia, cujos planos são
eternos,
supor que seus dons espirituais andam lado a lado com seus
talentos naturais? E que, por exemplo, um "filho de exortação" como
Barnabé (At 4.36),
que exerceu seu ministério pessoal dando generosamente (37)
e sendo amigo pessoal (por ex., At 9.26, 27, 11. 25,26), já era este tipo de
pessoa,
pelo menos em potencial, quando Deus o fez?
Neste caso devemos procurar as peculiaridades dos dons
espirituais de ensino e aconselhamento na elevação, na intensificação, na
"cristianização"
de um talento natural latente, ou já presente. Por esta
razão, uma pessoa pode ser um professor dotado antes de sua conversão, e depois
de
receber o charisma do ensino que o capacita a expor com
entendimento, clareza e relevância. Ou alguém pode ter por natureza u'a maior
facilidade
de se relacionar amigavelmente com pessoas, mas depois da
conversão recebe o dom espiritual da "exortação", que o capacita a
exercer um
ministério cristão específico de "exortação em
Cristo" (Fp 2.1), que inclui a instrução cristã (p.ex., 1 Ts 4.18, Tt 1.9)
e o calor e a força da fé
cristã (Rm 1.12). Em todas estas últimas referências ocorrem
as palavras parakaleo ou paraklesis.
Portanto, a evidência bíblica nos adverte a não traçarmos
uma linha demarcatória muito firme entre dons naturais e espirituais. John
Owen, em seu
grande livro do século XVII Pneumatogia ou A Discourse
Concerning lhe Holy Spirit ("Uma Dissertação Sobre o Espírito
Santo"), distinguiu entre dois
tipos de dons espirituais -"os que excedem todos os
poderes e capacidades da mente humana" e "os que consistem de
reforços extraordinários das
capacidades da mente humana". [1]
Todos os Dons Espirituais São Miraculosos?
Alguns leitores podem estar surpresos com a pergunta, porque
nunca pensaram que todos os charismata implicassem em milagre. Todavia, a
pergunta precisa ser feita, porque agora parece que algumas
pessoas dão a impressão de que a palavra "carismático" é mais ou
menos sinônimo de
"miraculoso".
Nossa resposta à pergunta precisa começar com a repetição de
alguns dons que, longe de serem miraculosos, parecem ser bem comuns, até
prosaicos. Não há nada de miraculoso nos dons de ensino e
exortação, dar dinheiro e exercer misericórdia. Também não há razão óbvia, a
concluir
das palavras, para pensar que "palavra da
sabedoria", "palavra do conhecimento" ou "fé" (1 Co
12.8,9) sejam ou incluam milagres. Nada no texto ou
no contexto sugere isto. A interpretação natural é que eles
se referem a uma medida especial de sabedoria e conhecimento (somada ao dom de
comunicá-los) e um grau especial de fé, obviamente não para
justificação ou santificação, mas para um tipo especial de ministério. Alguns
exemplos
do Antigo Testamento são Salomão, que recebeu o dom da
sabedoria, e os heróis de Hebreus 11, que receberam o dom da fé.
No mesmo sentido, Paulo e Pedro chamam "servir" de
dom espiritual (Rm 12.7, 1 Pe 4.11). O verbo diakoneõ é comum e pode referir-se
a qualquer
tipo de serviço, pastoral ou (o que é mais provável)
prático. Ho diakonõn é o garçom que serve à mesa (Lc 22.2és.) e a mesma palavra
é usada
para o trabalho doméstico de Marta (Lc 10.40). Depois, Paulo
menciona em 1 Coríntios 12.28 dois charismata traduzidos por
"socorros" e "governos"
(anti/empseis e kuberneseis). A primeira palavra aparece
somente aqui no Novo Testamento, mas é corretamente traduzida por
"ajudas" ou "atos
de ajuda". Parece ser outro termo geral como
"serviço". Kuberneseis, por sua vez, significa
"administração", e o Léxico de Arndt-Gingrich acrescenta
que "o plural indica provas de capacidade para ocupar
uma posição de liderança na igreja". A palavra cognata kubernetes é o
"timoneiro", o "piloto"
ou, mesmo, o "capitão" de um navio (At 27.11),
vindo a ser aplicada figuradamente, no grego clássico, para pessoas em posições
seculares de
liderança como, por exemplo, o governador de uma cidade.
Kuberneseis parece ser, então, o dom de guiar ou dirigir outros, talvez,
incluindo a
capacidade de distribuir responsabilidades para partes do
programa da igreja, ou a liderança de presidir uma reunião e
"pilotar" com sabedoria os
procedimentos de uma diretoria.
O que dizer, então, dos dons miraculosos? A "operação
de milagres" e os "operadores de milagres" já dizem pelo nome
que envolvem milagres; o
mesmo acontece provavelmente com "dons de curar",
"curas", bem como "variedades de línguas" e
"interpretação de línguas" (1 Co 12.9,10,28,29).
Presumindo que todos estes são dons miraculosos, surge a
pergunta: Será que eles ainda são concedidos nos dias de hoje? É estranho como
as
pessoas em geral têm rapidamente a resposta pronta, seja um
simples "sim" ou "não", sem verificar primeiro se há uma
doutrina bíblica de milagres,
à luz da qual esta pergunta possa ser analisada e
respondida. Aventuro-me a dizer que tanto "sim", quanto
"não" são respostas extremadas. Um
"não"dogmático, talvez, acrescido de:
"Milagres não acontecem mais hoje" ou, pior: "Milagres não podem
acontecer", é uma posição impossível de
ser mantida por um cristão. O Deus em que cremos é o Criador
livre e soberano do universo. Ele sustenta tudo pela palavra do seu poder. Toda
a
natureza lhe está subordinada. Ele não somente pode operar
milagres, mas ele também tem feito milagres. Quem somos nós para restringir seu
poder e dizer-lhe o que pode ou não fazer?
Todavia, a posição oposta também parece ser insustentável.
Em sua forma mais extrema, ela diz que quase tudo o que Deus faz é miraculoso.
Entretanto, por definição, um milagre é um evento
extraordinário, um desvio criativo da maneira normal e natural pela qual Deus
age. Se milagres
fossem coisas comuns, deixariam de sê-los. No entanto,
alguns cristãos vêem a atuação de Deus somente no que é milagroso. Eles fizeram
dele um
tipo de mágico. Todos precisamos urgentemente compreender a
revelação bíblica do Deus vivo cuja maneira primordial de agir na natureza e na
história, não é nem sobrenatural e nem miraculosa. Deus é o
altíssimo, que controla o reino dos homens (Dn 4.32), e que "considera as
nações
como um pingo que cai dum balde" e "as ilhas como
pó fino" (Is 40.15); "Deus é o juiz: a um abate, a outro exalta"
(SI 75.7). Também é ele quem
faz seu sol nascer e quem envia a chuva (Mt 5.45), quem
mantém a regularidade das estações (Gn 8.22, At 14.17), quem comanda o ímpeto
do
mar (SI 89.9), quem alimenta as aves e veste as flores (Mt
6.26,30), e quem tem o fôlego do ser humano em sua mão (Dn 5.23).
A partir do momento em que virmos o Deus vivo constantemente
em ação, através dos processos da história e da natureza, começaremos a
perceber, por exemplo, que toda cura é cura divina, seja com
ou sem o uso de meios naturais, psicológicos ou cirúrgicos. Sem estes meios, a
cura
pode ser chamada, corretamente, de "cura
miraculosa", com o uso de recursos disponíveis ela pode ser chamada de
"não-miraculosa", mas as duas
possibilidades são igualmente "cura divina".
Uma forma menos extrema desta segunda posição é a afirmação
de que, apesar de que nem tudo o que Deus faz é miraculoso, ele quer que os
milagres sejam elementos regulares de nossa vida e
ministério nos dias de hoje, como acontecia com nosso Senhor e seus apóstolos.
Mas isto
também não pode ser sustentado de maneira séria por pessoas
que tiram sua doutrina de milagres da Bíblia. A Bíblia contém muitas histórias
de
milagres, mas ela não â somente um livro de milagres, assim
como o Deus da Bíblia não é somente um Deus de milagres. Grandes porções da
história
bíblica não contém um único registro de milagre. De João
Batista, que Jesus chamou de maior homem da antiga dispensação, é dito
especificamente
que ele não fez nenhum milagre (Jo 10.41). Na verdade,
quando começamos a identificar onde os milagres estão na Bíblia, descobrimos
que eles se
agrupam como estrelas no céu noturno. Existem quatro
constelações principais. A primeira concentração é a época de Moisés (as pragas
do Egito,
a passagem pelo Mar Vermelho, o maná, a água, etc). A
próxima é a época de Elias, Eliseu e de outros profetas; a terceira é no
ministério do
próprio Senhor Jesus, e a quarta no dos seus apóstolos.
Acontece que estas são as quatro épocas principais em que houve revelação - a
lei, os
profetas, o Senhor e os apóstolos. E o principal propósito
dos milagres era confirmar cada novo estágio da revelação. Por exemplo, o fato
de que
Moisés era um profeta especial ("a quem o Senhor
conhecia face a face") foi confirmado por seus milagres especiais
("Nunca mais se levantou em
Israel profeta algum como Moisés, ...no tocante a todos os
sinais e maravilhas, que, por mando do Senhor, fez..." -Dt 34.10,11). De
maneira
semelhante, o ministério do Senhor Jesus foi "aprovado
por Deus ...com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou
por intermédio
dele..." (At 2.22).
Assim Deus também testificou da mensagem das testemunhas
oculares apostólicas "por sinais, prodígios e vários milagres, e por
distribuições[2]2 do
Espírito Santo segundo a sua vontade" (Hb 2.4). Por
esta razão â correto chamar o livro de Atos de "Atos dos Apóstolos",
porque todos os milagres
que Lucas registrou neste livro foram feitos por apóstolos
(veja At 2.43, 5.12); as duas únicas exceções são de dois homens que os
apóstolos
tinham comissionado pessoalmente, pela imposição de mãos
(é.8, 8.é,7). Também os sinais que Paulo fez foram chamados pJor ele de
"credenciais
do apostolado" (2 Co 12.12).33
Então, qual deve ser nossa atitude diante de milagres que
são ditos acontecerem hoje? Não deve ser nem uma incredulidade obtusa
("não
acontecem mais milagres"), nem uma credibilidade
impensada ("é claro! Milagres estão acontecendo o tempo todo"), mas
uma atitude de mente
aberta, de averiguação: "Eu não conto com milagres como
algo comum nos dias de hoje, porque a revelação especial que eles estavam
confirmando
já está completa; mas, sem dúvida, Deus é soberano e livre,
e â bem possível que haja situações especiais em que lhe apraz fazer
milagres".
Será que Todos os Dons Espirituais da Bíblia são Dados Hoje?
Já dei a entender que pode bem ser que as quatro listas que
constam da Bíblia não sejam completas, e que haja dons espirituais concedidos
hoje
que não aparecem em nenhuma destas listas. Agora verificamos
o oposto, que nem todos os vinte ou mais dons que são relacionados são
concedidos. Deixando de lado a questão dos dons miraculosos,
que já estudamos, precisamos abordar a questão de se há "profetas" e
"apóstolos"
hoje na igreja. Para as pessoas que partem do pressuposto de
que todos os charismata mencionados no Novo Testamento ainda são concedidos, a
existência atual de apóstolos e profetas é ponto pacífico.
Estes cristãos geralmente dizem e escrevem que não há "nenhuma evidência
bíblica" de
que algum dom seria tirado. Acontece que, na verdade, há
evidências para exatamente isto que eles dizem não haver.
É provável que a palavra "apóstolo" seja usada com
três sentidos diferentes no Novo Testamento. Somente em um único texto parece
que ela é
usada para todos os cristãos, que é onde Jesus diz que "o enviado
(apostoles, em grego) não é maior do que aquele que o enviou" (Jo 13.1é).
No
sentido geral de que todos nós somos enviados por Cristo ao
mundo e compartilhamos da missão apostólica da Igreja, (Jo 17.18, 20.21), todos
somos "apóstolos", no sentido amplo. Mas, já que
isto se aplica a todos os cristãos, não é um charisma dado somente a alguns.
Em segundo lugar, a palavra é usada pelo menos duas vezes
para "apóstolos das igrejas" (2 Co 8.23, Fp 2.25), mensageiros
enviados em missões
especiais de uma igreja para outra. Neste sentido a palavra
pode ser aplicada a missionários e outros cristãos enviados em missão especial.
Porém,
naturalmente não é este o sentido do charisma
"apóstolo", porque o que é imediata! mente digno de nota nas duas
listas em que "apóstolo' ocorre
é que em ambas ! este dom encabeça a lista (1 Co 12.28, 29,
Ef 4.11), e que na lista de Coríntios os primeiros dons estão em ordem de
importância
"primeiro, segundo, terceiro"), e
"apóstolos" vêm "primeiro", O dom do apostolado, que recebe
esta preferência, deve referir-se, portanto, àquele
grupo pequeno e especial de homens que foram "apóstolos
de Cristo" e que incluía os doze (Lc é.13), Paulo (p.ex., GI 1.1),
provavelmente Tiago, o
irmão do Senhor (GI1.19), e possivelmente um ou dois outros.
Eles detinham a condição especial de terem sido testemunhas oculares do Jesus
histórico, especialmente depois da ressurreição (At 1.21,22,
1 Co 9.1, 15.8,9), de terem sido indicados e autorizados pessoalmente por
Cristo (Mc
3.14), e de terem sido inspirados especialmente pelo
Espírito Santo para o seu ministério de ensino (p.ex., Jo 14.25,2é, 1é.12-15).
Portanto, neste
sentido principal em que estão na lista, eles não têm
sucessores, conforme a natureza do caso, como se dá com
"missionários" hoje, no sentido
secundário do termo.
E o que dizer dos profetas? Sem dúvida, na história da
Igreja houve ocasiões em que se alega terem surgido profetas. Será que estas
alegações
tem precedentes? Isto depende em grande parte de nossa
definição do que seja "profecia" e "profeta". O conceito
bíblico, que remonta ao tempo
do Antigo Testamento, é que um profeta era um instrumento da
revelação divina, a quem vinha a palavra do Senhor e que, portanto, pronunciava
as próprias palavras de Deus (p. ex., Ex 4.12, 7.1,2, Jr
1.4-9, 23.1é,18,22,28). Neste sentido do termo, que é o significado bíblico
essencial, eu
creio que devemos dizer que não hâ mais profetas, porque a
auto-revelação de Deus foi completada em Cristo e no testemunho apostólico de
Cristo, e o cânon da Escritura foi encerrado há muito. Além
disto, "profetas" vêm logo depois dos apóstolos nas listas de Efésios
e 1 Coríntios
mencionadas acima, "apóstolos e profetas" são, em
diversos textos, encarados como fundamento (por causa do seu ensino) sobre o
qual a Igreja é
edificada (Ef 2.20, 3.5). O conhecimento mais simples
possível de construção arquitetônica é suficiente para nos dizer que, uma vez
colocado o
alicerce de um edifício e a estrutura superior sendo
construída, o alicerce não pode ser colocado novamente. Portanto, no sentido
primordial de
"profetas", como veículos de revelação direta e
nova, parece que temos de dizer que este charisma não é mais concedido. Não
existe mais ninguém
na Igreja que pode arriscar-se a dizer: "Veio a mim a
palavra do Senhor, dizendo..." ou "Assim diz o Senhor'.
Entretanto, tem sido argumentado que "profeta' pode ser
usado em um outro sentido, secundário. Algumas pessoas acham que hoje pode
haver
pessoas como o profeta Ágabo (At 11.28, 21.10,11), cuja
função não é acrescentar algum elemento à revelação, mas predizer algum evento
futuro. Isto é possível. Todavia, tanto a história da Igreja
quanto a experiência pessoal me fazem ser cauteloso. Nada trouxe mais
descrédito para
Edward Irving e sua "Igreja Católica Apostólica"
no início do século passado do que o fato de que as predições das
"profetisas" não se
concretizaram. As minhas próprias observações confirmam
isto, porque eu mesmo ouvi muitas predições que não se cumpriram e levaram as
pessoas
envolvidas ou à desonestidade ou à desilusão.
Outras pessoas sugerem que ministério profético é o que
interpreta acontecimentos políticos ou comenta assuntos sociais (como os
profetas do
Antigo Testamento), porém é difícil isolar este aspecto da
sua obra da sua inspiração divina. Ainda outros interpretam o dom da profecia
como o
dom da exposição da Escritura ou da pregação, ou de
"edificar, exortar e consolar' (1 Co 14.3). Neste sentido, Abraão Kuyper
escreveu: "Por
profecia, Paulo entendeu pregação inspirada, em que o
pregador se sente ungido e impulsionado pelo Espírito Santo".4
Entretanto, todas estas interpretações ficam longe da
elevada definição bíblica acerca da profecia. Na Escritura, um profeta não é,
em primeiro
lugar, uma pessoa que prediz o futuro, nem alguém que
comenta o cenário político, nem um pregador avivado, nem mesmo alguém que traz
uma
palavra de ânimo; ele é a boca de Deus, o instrumento de
revelação nova. Parece que neste sentido Paulo identifica "apóstolos e
profetas" como os
mais importantes de todos os charismata (Ef 2.20, 3.5,
4.11,1 Co 12.28); e â neste sentido que devemos dizer que eles não existem mais
na igreja
(sejam quais forem os significados e ministérios
secundários). Hoje, Deus não ensina mais a Igreja através de revelação nova,
mas pela exposição
da sua revelação que foi completada em Cristo e na Bíblia.
O Termo "Carismático"
Estivemos examinando a natureza dos charismata, fazendo e
respondendo algumas perguntas sobre eles. Tudo isto me leva a registrar um protesto
-brando contra diversos usos indevidos do adjetivo
"carismático", que representa mal a natureza dos charismata.
Alguns teólogos contrapõem os termos "carismático"
e "institucional" quando falam do ministério cristão. Eles chamam
pastores e mestres (também
bispos e presbíteros) de "institucionais", por
terem sido indicados pela igreja, e profetas de "carismáticos", por
terem sido indicados pelo próprio
Deus. Todavia, isto é (pelo menos em parte) uma distinção
errada. É verdade que Deus é chamou "apóstolos e profetas" sem que
eles recebessem
alguma autorização da Igreja. Isto porque a Igreja não tem o
direito de autorizar pessoas que Deus não chamou. De acordo com a Bíblia,
pastores e
mestres são tão "carismáticos" como profetas (Ef
4.11), e jamais uma pessoa deve ser indicada para um cargo na igreja sem ter
sido antes
chamada e dotada por Deus. O Novo Testamento em nenhuma
ocasião admite uma anormalidade tão absurda como um i homem exercendo um
ministério sem o charisma que o qualifique para tal. John Owen
expressou isto de maneira admirável: "A Igreja não tem poder para nomear
alguém
para uma função ministerial, se Cristo não se antecipou à
sua indicação concedendo-lhe dons espirituais". 5 Podemos ir ainda mais
longe e dizer
(por exemplo) que o Novo Testamento não faz distinção entre
"o dom do ensino" e "o dom de mestre" (p.ex., 1 Co 12.28,
Rm 12.7, Ef 4.11). O
charisma consiste em uma união de cargo e dom.
Nos últimos anos, os jornalistas acostumaram-se a escrever
de líderes "carismáticos", ou de polf'ticos e artistas com
"carisma". No sentido em que
eles a usam, a palavra parece descrever um misto de charme e
temperamento. A pessoa chamada de "carismática" tem uma personalidade
brilhante. Porém, não há justificativa para aplicar este
termo a descrentes de destaque, que não confessam Jesus como Senhor. Tem-se
também a
impressão falsa de que os charismata do Novo Testamento são
todos dons espetaculares, sendo que os dons de misericórdia em segredo,
generosidade e administração podem ser
"carismáticos" da mesma forma, no verdadeiro sentido bíblico.
Em terceiro lugar, há o "movimento carismático"
contemporâneo, ao qual já fizemos referência. Por mim mesmo, eu uso esta
expressão por cortesia
para com aqueles que a preferem, em vez de outra qualquer;
mas eu faço isto com relutância, porque parece-me que isto dá uma impressão
falsa
muito séria. Isto significa aplicar a um grupo de cristãos
dentro da igreja o título "carismático", que, na verdade, pertence a
toda a Igreja. Toda a
Igreja é uma comunidade carismática. Ela é o Corpo de
Cristo, cujos membros funcionam por causa dos seus dons (charismata).
O Alcance dos Dons Espirituais: A Quem Eles São Dados?
Agora que tentei definir o que são os dons espirituais -com
sua variedade rica, sua relação com os talentos naturais, e que incluem também
características mundanas e sensacionais -é hora de refletir
sobre a sua distribuição. A quem eles são concedidos? Nossa resposta imediata
deve
ser que, se há uma diversidade ampla, deve haver também uma
distribuição ampla. Charismata não são privilégio de um grupo seleto. Pelo
contrário, o Novo Testamento nos garante que todo cristão
tem pelo menos um dom ou capacitação para o serviço, por mais adormecido ou
desusado que seja. Há duas evidências para esta afirmação.
A primeira é que todos os quatro capítulos que alistam os
dons espirituais contêm um registro direto deste fato:
"Digo a cada um dentre vós que ...pense de si mesmo
...com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um ...tendo,
porém,
diferentes dons" (Rm 12.3,é) -usemo-los!
"Mas um só e o mesmo Espírito realiza todas estas
coisas, distribuindo as, como lhe apraz a cada um, individualmente" (1 Co
12.11).
"E a graça foi concedida a cada um de nós segundo a
proporção do dom de Cristo..:' (Ef 4.7).
"Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que
recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus" (1 Pe 4.10).
As palavras em itálico em cada versrculo são ou pas
("todos"), ou hekastos ("cada um"). Certamente é empolgante
notar que os dons, além de
terem distribuição ampla, são universais!
A segunda evidência é a metáfora do corpo, a representação
favorita de Paulo sobre a Igreja como Corpo de Cristo. A Igreja se assemelha ao
corpo
humano, porque ambos são sistemas coordenados que consistem
de muitos membros, dos quais cada um tem uma função distinta. É significativo
que nas três passagens em que Paulo aborda a questão dos
dons espirituais (Rm 12, 1 Co 12 e Ef 4) ele usa a metáfora do corpo. Parece
que em
sua mente o Corpo de Cristo e os charismata necessariamente
precisam andar lado a lado. Em duas das três passagens, o vínculo entre ambos é
bem evidente. Seu argumento é, por um lado, que, como no
corpo humano, também no Corpo de Cristo cada órgão ou membro tem alguma função
e, por outro, que cada um tem uma função diferente.
"Porque, assim como num corpo temos muitos membros, mas
nem todos os membros têm a mesma função; assim também nós, conquanto
muitos somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros,
tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada..." (Rm
12.4-é), que devem ser usados.
"Porque assim como o corpo é um, e tem muitos membros,
e todos os membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com
respeito a Cristo. Porque também o corpo não é um só membro,
mas muitos. Ora, vós sois corpo de Cristo; e, individualmente, membros deste
corpo"(1 Co 12.12,14,27).
Este fato, de que cada cristão tem um dom e, portanto, uma
responsabilidade, e de que nenhum cristão é esquecido e deixado sem capacitação,
é
fundamental na doutrina da Igreja do Novo Testamento. Isto
também deveria transformar a vida de cristãos e igrejas. A idéia tradicional
que temos
de uma igreja local é a de um pastor sobrecarregado, talvez
ajudado por um pequeno núcleo de colaboradores dedicados, enquanto a maioria
dos
membros dá pouca ou nenhuma contribuição à vida e ao
trabalho da igreja. Isto nos lembra mais a imagem de um ônibus (com um
motorista e
muitos passageiros sonolentos) do que a de um corpo (em que
todos os membros são ativos, cada um contribuindo com uma atividade especial
para a saúde e a eficiência do todo). Na verdade, eu não
duvido de que uma imagem falsa da igreja é uma das principais razões do
crescimento do
"movimento carismático". Este movimento é um
protesto contra o clericalismo (onde obreiros de tempo integral ocupam os
espaços dos leigos), e
uma tentativa de liberar os leigos para os papéis de
liderança responsável para os quais Deus os dotou.
Muitas igrejas locais (especialmente seus pastores) lamentam
que faltam à igreja líderes capacitados, e esta é a desculpa comum para fazer
pouco
e para conservar firmemente nas mãos do pastor o controle do
pouco que é feito. A Bíblia, no entanto, dirige-se a cada igreja com as mesmas
palavras que Paulo dirigiu aos coríntios: "Vós sois
Corpo de Cristo". Este é um exemplo de como ás aparências podem diferir da
Escritura: as
aparências indicam que a congregação não tem dons, mas a
Bíblia diz: "Tolice! Não pode ser. Vocês são o Corpo de Cristo!" Este
conflito entre a
Palavra de Deus e as conclusões humanas leva a uma crise na
fé. Se levamos Deus a sério, somos obrigados a crer que ele capacitou, ou pelo
menos está disposto a fazê-lo, cada Igreja local com todos
os dons que ela precisa para sua vida, sua saúde, seu crescimento e seu
trabalho.
Nossa obrigação é orar para que Deus levante obreiros
dotados, estar constantemente à procura de pessoas que estão enterrando
conscientemente ou negligenciando sem perceber seus dons,
incentivar as pessoas a pOr em prática os dons que Deus lhes deu (veja 1 Tm
4.14, 2
Tm 1.é), e providenciar oportunidades para que eles possam
fazê-lo. Sem dúvida, há espaço para voluntários que oferecem seus serviços; mas
é
mais saudável e bíblico que a igreja supervisione e esteja
alerta a como Deus está equipando e chamando seu povo para o serviço.
Lembro-me de ter sido tocado por uma palavra sábia dita por
Jan van Capelleveen, jornalista, radialista e Secretário de Informações da
Sociedade
Bíblica Holandesa, no Congresso Europeu de Evangelização,
realizado em Amsterdã em 1971. Ele sugeriu que fizéssemos um "inventário
das
oportunidades espirituais e dos dons espirituais da igreja
loca!". Ou seja, um grupo de cada igreja deveria tomar tempo e se esforçar
em verificar o
que Deus estava querendo que a igreja fizesse, e que
recursos ele lhe tinha dado para isto (ou precisaria lhe dar). Esta
identificação de metas e a
adaptação dos recursos às metas podem ser princípios
elementares da moderna administração de empresas; mas a Bíblia já os ensinou
muito antes
mesmo de se pensar em administração de empresas! Seja como
for, nada melhor pode ser imaginado para libertar uma igreja do clericalismo,
ou para
mobilizar seus membros, do que a compreensão das verdades
bíblicas simples de que a Igreja é o Corpo de Cristo, e que cada membro do
corpo tem
uma função a exercer. É neste sentido, como vimos, que toda
a Igreja é uma "comunidade carismática", porque cada membro da
comunidade tem
um charisma e, em alguns casos, mais de um.
A Origem dos Dons Espirituais: De Onde Eles Vêm?
Já definimos a natureza diversa e a distribuição ampla dos
charismata. Agora precisamos enfatizar que eles vêm de Deus. Dons espirituais
são dons
de Deus. O Novo Testamento expressa isto de diversas
maneiras.
Em primeiro lugar, os dons espirituais são dons da graça de
Deus. As próprias palavras gregas indicam isto claramente. Charismata são
dotações de
charis, isto é, do favor imerecido de Deus. Veja estes
textos:
"Tendo diferentes dons (charismata) segundo a graça
(charis) que nos foi dada" (Rm 12.é).
"A graça (charis) foi concedida a cada um de nós
segundo a proporção do dom (dõrea) de Cristo" (Ef 4.7).
"Servi uns aos outros, cada um conforme o dom
(charisma) que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça (charis) de
Deus" (1 Pe
4.10).
Para sentirmos a força disto, pode ser útil lembrarmos que a
palavra charisma não é usada somente para os dons espirituais, no Novo
Testamento,
mas também para a salvação. Por exemplo: "O salârio do
pecado é a morte, mas o dom (charisma) gratuito de Deus é a vida eterna em
Cristo Jesus
nosso Senhor" (Rm é.23). Estamos acostumados a creditar
nossa salvação à graça imerecida de Deus que nos alcança, e nada ensina melhor
a
humildade do que esta realidade. Entretanto, os charismata,
que são dados para o serviço, são tanto um presente gratuito e imerecido de
Deus
quanto o carisma da vida eterna. Portanto, também nesta ârea
não hâ lugar para inveja ou vanglória.
Em segundo lugar, os dons espirituais são dons do Espfrito
de Deus. O caprtulo 12 de 1 Corrntios começa, literalmente, com as palavras:
"A
respeito dos espirituais", ou "A respeito das
coisas espirituais" (peri de tõn pneumatikan). Nossas traduções trazem
"dons" espirituais, mas
percebemos que não se trata da palavra charismata. Talvez
Paulo usou esta expressão mais vaga deliberadamente, porque pretendia escrever
sobre a atuação do Espírito em diversas âreas, iluminando
nossas mentes para confessarmos Jesus como Senhor (v.3), e unindo-nos ao Corpo
de
Cristo quando somos batizados nele e bebemos dele (v.13),
além de nos dotar de dons espirituais. As expressões "o Espírito",
"o Espírito de Deus",
"o Espírito Santo", "o mesmo Espírito",
"um só Espírito" e "um e o mesmo Espírito" ocorrem juntas
onze vezes nos primeiros treze versrculos.
Portanto, a ênfase é óbvia.
Mesmo assim, nos versrculos 4 a é (como jâ vimos) hâ uma
referência consciente às três pessoas da Trindade: "o mesmo Deus",
"o mesmo Senhor"
e "o mesmo Espírito". Também em Romanos 12 e 1
Pedro 4 é Deus Pai o autor dos dons espirituais, e em Efésios 4 eles são os
dons do Cristo
glorificado, o cabeça da Igreja, que "deu dons aos
homens" (vv. 7-11), em cumprimento à profecia. Parece que, mesmo sendo o
Espírito Santo o
executivo da Divindade, e mesmo Deus fazendo o que faz hoje,
através do seu Espírito, a mesma coisa acontece tanto com os dons espirituais
como com as experiências mais profundas: não devemos
credita-las exclusivamente ao Espírito. mas lembrar que . as três pessoas da
Trindade
estão envolvidas.
Em terceiro lugar. os dons espirituais são dons da soberania
de Deus. Em Efésios 4 o Cristo glorificado é apresentado como um general
vitorioso.
que lidera uma multidão de cativos libertos e distribui os
despojos da batalha. Os presentes são de graça e a distribuição é soberana.
Isto também
é dito em 1 Coríntios 12.11: "Um só e o mesmo Espírito
realiza todas estas coisas. distribuindo-as. como lhe apraz. a cada um.
individualmente".
Por isso. recebemos a permissão. na verdade uma ordem. de
"procurar os melhores dons". e isto "com zelo" (1 Co
12.31). É possível que este desejo
sério esteja relacionado com "a medida da fé que Deus
repartiu a cada um" (Rm 12.3), e a Bíblia nos incentiva a orarmos por um
aumento da nossa
fé. Mesmo assim, a partilha dos dons não depende da nossa
vontade, mas da vontade do próprio Espírito Santo soberano. Portanto. os
charismata
provêm da vontade graciosa de Deus. e são concedidos por ele
através do Espírito Santo.
O apóstolo se detém para explicar as conseqüências deste
fato (1 Co 12.14-2é). Seu argumento é que. se o Espírito Santo distribui dons
espirituais
de acordo com sua vontade graciosa e soberana. então não há
nenhuma justificativa para inveja nem arrogância. Como podemos ter coragem de
desprezar nosso dom e olhar com inveja para os dons dos
outros, se Deus nos deu dons de acordo com sua graça e vontade? Da mesma forma.
como podemos menosprezar os dons de outras pessoas e
compará-los depreciativamente com os nossos, se Deus Ihes deu seus dons de
acordo
com sua graça e vontade? Vejamos como ele trata os pecados
opostos de auto-desprezo e auto-glorificação.
Primeiro. o auto-desprezo (vv.15-20). Com vivacidade
divertida ele faz as diversas partes do corpo humano falarem. O pé não deve
depreciar-se e
dizer "Olhem para mim! Eu não sirvo para nada. Eu não
posso ajuntar coisas ou fazer manobras complicadas como a mão. que é tão
versátil. Eu não
passo de um velho pé desajeitado". De modo semelhante,
o ouvido não deve diminuir-se e dizer: "Olhem para mim! Eu também não
sirvo para nada.
Eu não posso ver nada. nem formas. nem cores. Eu sou cego.
Tudo o que eu posso fazer é ouvir ruídos". Observações auto-depreciativas
como
estas são tolas. e não fazem com que pé ou ouvido
"deixem de ser do corpo". Porque. se todo o corpo fosse nada mais que
um enorme olho, como
poderia ouvir alguma coisa? E se fosse um ouvido
desproporcional. como faria para cheirar alguma coisa? Não. o corpo precisa
ouvir e ver. cheirar e
ouvir. Assim. "Deus dispôs os membros. colocando cada
um deles no corpo, como lhe aprouve". Se ele não tivesse feito isto. não
existiria o corpo.
Entretanto, "o certo é que há muitos membros. mas um só
corpo". Assim. nenhum órgão tem motivo válido para auto-desprezo.
O pecado oposto é auto-glorificação (vv.21-2é). O olho não
pode desprezar a mão ou desfazer-se desdenhosamente dela, dizendo: "Eu não
preciso
de você. Você não passa de uma mão, E verdade que você pode
pegar e segurar coisas, Mas você é inútil, porque não pode ver', Da mesma
forma,
a cabeça não preciso de vocês! Vocês não passam de dois pés
de chinelos, Eu reconheço que vocês conseguem se mover desajeitadamente por
ar, Mas quem -pensa aqui sou eu, Eu abrigo o sistema nervoso
central, Sou eu quem pensa, planeja e decide, Eu posso me dar muito bem sem
vocês", Paulo não admite este tipo de conversa
arrogante, e até a contradiz: "Pelo contrário", diz ele, "Deus
fez o corpo de maneira a fazer suas
partes mais fracas indispensáveis e dar maior honra a suas
partes menos apresentáveis",
Para recapitular: a voz do auto-desprezo diz: "Eu não
sirvo para nada; você não precisa de mim", e a voz da auto-glorificação
diz: "Você não serve
para nada; eu não preciso de você", Todavia, a voz de
Deus diz: "Vocês precisam um do outro", Os dons que Deus nos deu e os
que ele deu a
outros, todos são importantes e necessários, Juntos eles
formam o Corpo de Cristo, completo e sadio, no qual todos os membros funcionam
adequadamente,
Somente quando paramos de desprezar os outros ou nós mesmos,
e reconhecemos que os dons vêm de Deus, não haverá mais "divisão no
corpo" !
(v,25), Deus odeia a discórdia. Sua vontade, pelo contrário,
é que "cooperem os membros, com igual cuidado, em favor uns dos
outros",
participando uns dos :f sofrimentos e das alegrias dos
outros, E a grande verdade, a única que pode libertar-nos de inveja e vanglória,
é que os
dons espirituais são presentes de Deus, distribuidos por sua
graça e de acordo com sua vontade, Citando a feliz frase de John Owen, eles são
as
"obras de caridade arbitrárias" de Deus,é Por
isso, não temos o direito de desvalorizá-los, quer tenham sido concedidos a
" nós, quer a outros,
O Propósito dos Dons Espirituais: Para que Eles São Dados?
Os dons de Deus são dados para serem usados, Os órgãos do
corpo humano são funcionais, De modo semelhante, os membros do Corpo de Cristo
foram feitos para exercer seus dons. Nós somos
"despenseiros da multiforme graça de Deus", e recebemos a ordem para
sermos "bons despenseiros"
(1 Pe 4,10), Paulo escreveu: "Usemos os nossos
diferentes dons" (Rm 12.é, BLH), Porém, como devemos usá-los?
Muitos mal-entendidos existem em relação ao propósito com
que Deus distribui dons espirituais na Igreja, Algumas pessoas os chamam de
"dons do
amor', como se seu propósito principal fosse enriquecer os
receptores, e nós pudéssemos usá-los para nosso próprio benefício, Outros
pensam que
eles são "dons de culto", como se seu propósito
principal fosse adorar a Deus e sua esfera de atuação primordial fosse a
direção do culto público. A
Escritura, por sua vez, afirma que eles são "dons de
serviço", cujo propósito primordial 6 "edificar " a Igreja.
Os apóstolos Paulo e Pedro sublinham o uso altruísta dos
dons de Deus I_é a serviço de outras pessoas; na verdade, de toda a Igreja: I é
"Cada um recebe o dom de manifestar o Esprrito para a
utilidade de todos"(1C012.7,BJ).
"Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que
recebeu" (1 Pe 4.10).
Portanto, os dons espirituais não são dados para ajudar,
confortar e fortalecer a nós mesmos (os receptores), mas outros. Este é o
significado da
pa- lavra "edificação" (veja Ef 4.12, 16).
Esta também 6 a razão pela qual, alguns dons são mais
valiosos do que outros. Já vimos que nenhum dom deve ser desprezado. Ao mesmo
tempo,
p0- rém, devemos desejar ansiosamente "os melhores
dons" (1 Co 12.31). Como, então, podemos avaliar sua importância relativa?
A única resposta
possrvel a esta pergunta é: "De acordo com O grau em
que edificam". Já que todos os charismata são dados para a edificação de
cristãos
individuais e da igreja como um todo, quanto mais eles
edificam, mais valiosos eles são. Paulo é claro como cristal a respeito disto.
"Visto que
desejais dons espirituais", ele escreve, "pro-
curai progredir, para a edificação da igreja" (1 Co 14.12). I Por este
critério, os dons de ensino têm O
valor mais elevado, porque na- da edifica melhor os cristãos
do que a verdade de Deus. Por isso, não é surpreendente encontrar um ou mais
dons
de ensino encabeçando as listas do Novo Testamento. A
insistência dos apóstolos na prioridade do ensino tem relevância considerável
na Igreja do
nosso tempo. Em todo o mundo, as igrejas estão
espiritualmente subnutridas, por causa da carência de expositores da Br- blia.
Em áreas onde há
movimentos de massa todos estão suplicando mestres que
instruam os convertidos. Por causa da escassez de instrutores, é triste ver I
tantas
pessoas preocupadas e at6 distrardas por dons de importância
secundária. A esta altura, provavelmente, algo precisa ser dito a respeito das
"línguas", um dom muito enfatizado por algumas
pessoas. Ainda paira um ponto de interrogação sobre o fenômeno contemporâneo
conhecido como
falar em línguas, quanto a ele ser idêntico ao dom do Novo
Testamento. Está claro que no Dia de Pentecoste os crentes cheios do Esprrito
estavam
falando "em outras línguas", isto é, em línguas
estranhas, e "segundo o Esprrito Ihes concedia que falassem", e que
todas estas línguas eram
compreensrveis a grupos da multidão (At 2.4-11). A suposição
teológica e lingürstica é forte no sentido de que o . fenômeno mencionado em 1
Corrntios é o mesmo. Primeiro, porque as expressões no grego
são praticamente as mesmas, e uma das primeiras regras da éinterpretação da
Bíblia
é que expressões idênticas têm significado idêntico. Em
segundo lugar, porque o substantivo gfõssa tem somente dois significados
conhecidos, que
são o órgão na boca e o idioma. A tradução "expressão
extática" .. não tem base lingürstica. Isto não é uma tradução, mas uma
interpretação. De
modo análogo, o verbo "interpretação de línguas"
significa tradução de idiomas. Em terceiro lugar, todo o empenho de 1 Corrntios
14 é no sentido
de desencoraiar o culto do caráter ininteligrvel, como coisa
de criança: "Irmãos, não sejais meninos no jurzo; ...sede homens
amadurecidos" (v.20).
O Deus da Bíblia é um Deus racional, que não tem prazer em
irracionalidade ou em ininteligibilidade.
A interpretação levanta algumas dificuldades exegéticas, que
levaram algumas pessoas a distinguirem radicalmente entre "Irnguas"em
Atos e
"Irnguas" em 1 Corrntios. Más as dificuldades são
pequenas em comparação com a força do argumento de que o fenômeno é o mesmo,
não uma
expressão extática ininteligrvel, mas um idioma inteligrvel
-compreensrvel, é claro, a alguns poucos presentes (como no dia de Pentecoste);
obviamente ela precisaria ser "interpretada" ou
"traduzida" em um porto como Corinto, em que se falavam muitos
idiomas, para beneffcio daqueles
que falavam alguma língua estrangeira. Se o dom é
essencialmente lingürstico, é mais fácil compreender a razão pela qual '1 Paulo
o coloca no fim
da lista, e porque não é mencionado nas três outras lis1
tas. É verdade que ele diz: "Eu quisera que vós todos falásseis em outras
línguas" (1 Co
14.5; no mesmo sentido Molsés disse: "Oxalá todo o povo
do Senhor fosse profeta", Nm 11.29), porque todos os dons de Deus são bons
e
desejáveis, mas em si (isto é, além do conteúdo falado) eles
não têm capacidade para edificar.
O que dizer, então, da prática atual e particular do falar
em línguas, como ajuda à devoção pessoal? Muitos dizem estar descobrindo
através disto
um novo grau de fluência quando se achegam a Deus. Outros
falam de um tipo de "liberação psíquica" que experimentaram, e que
ninguém quer lhes
negar. Por outro lado, precisa ser dito (1 Co 14) que Paulo,
antes de proibir completamente o falar em línguas em público sem interpretação,
desencoraja com insistência que se fale em línguas em
particular, se a pessoa não entende o que está dizendo. Muitas vezes, as
pessoas se
esquecem do versículo 13: "O que fala em outra língua,
ore para que a possa interpretar'. De outra forma sua mente fica
"infrutífera" ou
improdutiva. Mas, então, o que ele deverá fazer? O próprio
Paulo faz a pergunta. E responde dizendo que irá orar e cantar "com o
espírito", mas
também "com a mente". Está claro que ele
simplesmente não consegue imaginar oração e louvor dos cristãos em que a mente
não esteja envolvida
de modo ativo.
Alguns leitores, sem dúvida, responderão que nos primeiros
versículos de 1 Corrntios 14 o apóstolo contrasta a profecia e o falar em
línguas, afirma
que o profeta "e di fica a igreja" enquanto quem
fala em línguas "edifica a si mesmo" e, ~portanto, está incentivando
ativamente a prática de falar
em línguas em particular. Eu questiono se podemos tirar esta
conclusão legitimamente, devo confessar. Duas razões fazem-me hesitar.
A primeira é que, no Novo Testamento, a
"edificação" invariavelmente é um ministério voltado para as outras
pessoas. A palavra grega oikodomeõ
significa literalmente "construir" -cidades,
casas, sinagogas, etc. É aplicada figuradamente à Igreja. Jesus disse:
"Edificarei a minha igreja" (Mt
1é.18). O apóstolo Paulo escreveu: "Editrcio de Deus
sois vós" (1 Co 3.9; veja Ef 2.20,21), e Pedro acrescentou: "Vós
mesmos, como pedras que
vivem, sois edificados casa espiritual" (1 Pe 2.5). A
partir deste significado básico, a palavra passou a ser usada no sentido de
"fortalecer,
estabelecer, fazer crescer em número e maturidade"
cristãos e igrejas. Lucas escreve que a Igreja na Palestina estava
"edificando-se", e Paulo
escreve que sua autoridade apostólica tinha-lhe sido dada
"para edificação" (At 9.31,2 Co 10.8,12.19, 13.10). Além disso, os
cristãos têm um
ministério de "edificação de uns para com os
outros" (Rm 14.19), também expresso na ordem: "Edificai-vos
reciprocamente" (1 T s 5.11; veja Rm
15.2, Ef 4.29, Jd 20). E, se alguém perguntar o que mais
edifica a Igreja, Paulo responderia "a verdade" (At 20.32; veja CI
2.7) e "o amor" (1 Co
8.1; veja também 10.23). A mesma ênfase em edificar os
outros transparece em 1 Corrntios 14: o profeta "edifica" com sua
mensagem (vv. 3,4), e,
no culto público, "tudo" deve ser feito "para
edificação" (v. 26; veja também 17), e os cristãos devem procurar
"progredir, para a edificação da
igreja" (v. 12; veja também o 5). Agora, à luz desta
ênfase consistente do Novo Testamento na edificação como ministério aos outros na
Igreja, o
que faremos com a única exceção, que diz que quem fala em
línguas "edifica a si mesmo"? Certamente deve existir pelo menos uma
ponta de ironia
no que Paulo escreve, porque a frase praticamente se
contradiz em seus termos. A auto-edificação está completamente fora de
cogitação quando
o Novo Testamento fala de edificação.
Em segundo lugar, devemos entender a expressão à luz do
ensino que já estudamos "para a utilidade de todos", para o serviço
aos outros. Então,
como pode-se inverter este dom e usá-lo para proveito
próprio, e não mais o proveito de todos? Não devemos concluir que isto é um
abuso do
dom? O que pensar de um crente que recebeu um dom de ensino
e que o usa somente para dar-se instrução particular, ou de alguém que recebeu
um dom de curar e o usa somente para curar a si, e mais
ninguém? É ditrcil justificar o uso egoísta de um dom concedido especificamente
para o
benetrcio dos outros.
Por estas duas razões parece-me que deve haver uma ponta de
ironia, quando não de sarcasmo, no tom de voz de Paulo quando ele descreve
aquele que fala em línguas para edificar a si mesmo. Para
ele não há dúvidas de que os coríntios, a quem ele explicou claramente o
propósito dos
dons espirituais no icaspitulo 12, entenderão o que ele está
dizendo e não carecem de maiores explanações. Portanto, os charismata são dados
para a "utilidade de todos". Paulo aplica este
princípio em Efésios 4.11,12 aos dons de ensino. Cristo dotou alguns para serem
"apóstolos, outros
para profetas, outros para evangelistas, e outros para
pastores e mestres". Por que? Com que propósito? Ele mesmo responde.
"Com vistas ao
aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço,
para a edificação do corpo de Cristo". O objetivo imediato do instrutor é
levar
pessoas cristãs (os "santos") à maturidade cristã
e ao serviço cristão, equipando-os para o seu ministério na Igreja e no mundo.
Os pastores são
chamados para serem instrutores, e isto de forma alguma quer
dizer que eles ri devem reservar com ciúmes todos os ministérios que devem ser
exercidos para si. Pelo contrário, seu ministério é produzir
mais ministério, incentivando outros a exercerem os dons que Deus lhes deu.
Somente
então o outro objetivo ! será alcançado, que é (novamente)
"a edificação do corpo de Cristo", até que atinja sua unidade e
maturidade completas,
a "medida da estatura da plenitude de Cristo" (vv.
12,13).
Esta meta gloriosa, que deveria preencher nossas mentes como
acontecia com o apóstolo Paulo, será alcançada através da dupla influência da
verdade e do amor. É "seguindo (ou falando) a verdade
em amor" que cresceremos "em tudo naquele que é o cabeça,
Cristo" (v. 15). É evidente
que a verdade 6 indispensável para que cristãos e igrejas
cresçam em maturidade, porque sem uma compreensão completa e um entendimento
claro da verdade revelada de Deus continuamos sendo como
crianças, "agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo
vento de
doutrina" (v. 14). A verdade, no entanto, pode 1 ser
fria e cruel, se não for aquecida e amaciada pelo amor. É por isso que Paulo
diz que "o
conhecimento ensoberbece, mas o amor edifica" (1 Co
8.1). Todos nós sabemos da influência destacada que o amor tem em termos de um
desenvolvimento emocional sadio das crianças. Se isto é
válido para a família humana, quanto mais será para a família de Deus? Esta é a
razão da
inclusão de 1 Coríntios 13 entre os capítulos 12 e 14, que
tratam dos dons espirituais. Os charismata são dados todos para o serviço, para
a
edificação do Corpo de Cristo, mas eles devem ser exercidos
em amor, para que produzam o resultado desejado. Isto porque sem o amor todos
os
dons são sem valor, não importa quão espetaculares sejam
(13.1-3). Desta forma, o amor é o "caminho sobre- modo excelente",
mais valioso até
que os dons mais elevados (12.31). Mas não devemos ter
necessidade de escolher entre dons e amor, porque Deus quis que eles andassem
juntos.
O verdadeiro amor sempre se expressa no serviço, não através
dos dons que nos foram dados para capacitar-nos para servir.
De fato, se amor e verdade andam juntos, e amor e dons
também estão lado a lado, então amor e serviço também andam juntos, já que o
verdadeiro amor sempre se expressa pelo serviço. Amor é
servir. Ficamos, portanto, com estes quatro aspectos da vida cristã formando um
anelou
um círculo que não pode ser quebrado: amor, verdade, dons e
serviço. O amor produz serviço, o serviço usa os dons, o dom mais elevado é o
ensino da verdade, e a verdade, por sua vez, deve ser dita
com amor. Cada um envolve os outros e, seja onde for que comecemos, todos os
quatro são ativados. Entretanto, "o maior destes é o
amor..." (13.13).
CAPíTULO QUATRO -NOTAS
I. Quarta edição (Richard Baynes, Londres, 1835), p.310.
2. A palavra em grego não é charismata, mas merismoi,
"distribuições" (melhor que a tradução "dons" -ARC), e pode
referir-se à distribuição de
poderes, como sugere o contexto, em vez de dons.
3. As palavras atribuídas ao Senhor ressurreto, de que
"estes sinais hão de acompanhar aqueles que crêem", constam da
chamada "conclusão mais
longa" do Evangelho de Marcos (1é.1é), reconhecidamente
posterior à escrita do Evangelho. A BJ menciona uma "conclusão mais
breve". Muitos
eruditos são da opinião, por causa da evidência fraca em
favor destas conclusões nos manuscritos mais antigos, que o Evangelho de Marcos
terminava abruptamente com o versículo 8 ou, o que é mais
provável, que originalmente ele tinha uma conclusão que incluía as aparições de
Jesus
depois da ressurreição, mas que infelizmente foi perdida. É
no mínimo muito inseguro basear uma crença no caráter normal dos milagres nesta
conclusão mais longa, já que é praticamente certo que ela
não é de Marcos e, por isso, também não é de Jesus.
4. A. Kuyper, The Work o( lhe Ho/y Spirit (A Obra do
Espírito Santo), 1888 (Funk and Wagnalls, Londres e Nova York, 1900), p. 187.
5. John Owen, op. cit., p. 315. é. John Owen, op. cit.,
p.324.
CONCLUSÃO
Começamos com a "promessa" ou "batismo"
do Espírito, este generoso dom inicial que Deus nos dá quando nos toma para
sermos seu povo. O
perdão e o dom do Espírito são verso e anverso da salvação
ampla que Cristo nos dá. Nunca devemos deixar de agradecer a Deus com admiração
renovada diariamente pelo fato de que ele, em seu amor,
primeiro deu seu Filho para morrer por nós, e depois deu seu Espírito para
viver em nós.
Hoje não há mais templo em Jerusalém para onde precisamos ir
a fim de nos encontrarmos com Deus; cada um de nós é templo de Deus, bem como
a igreja local, porque Deus mora em nós através do seu
Espírito.
Em segundo lugar, precisamos buscar cada vez mais a
plenitude do Espírito, através de arrependimento, fé e obediência e, também,
continuar
semeando no Espírito, de modo que seu fruto cresça e
amadureça em nosso caráter. Eu creio que posso dizer sem medo de errar que já
há muitos
anos criei o hábito de orar para que cada dia Deus me encha
de seu Espírito e faça aparecer o fruto do Espírito mais em minha vida.
Por último, devemos nos lembrar sempre que o Espírito Santo
se preocupa tanto com a Igreja quanto com os cristãos individuais. Por isso
devemos
nos alegrar igualmente com sua charis (graça) dada a todos,
que nos torna um, e com seus charismata (dons) distribuídos a todos, que nos
tornam
diferentes. Tanto a unidade quanto a diversidade da Igreja
são da sua vontade.
Vimos que os dons são capacitações múltiplas e variadas para
o serviço;que cada cristão, sem exceção recebeu pelo menos um dom; que eles são
distribuídos pela vontade soberana de Deus, Pai, Filho e
Espírito Santo; e que eles são dados "para o bem de todos", para
edificar em maturidade o
Corpo de Cristo, a Igreja. Portanto, usemos nossos dons em
favor dos outros, "como bons despenseiros da multiforme graça de Deus
...para que em
todas as coisas seja Deus glorificado, por meio de Jesus
Cristo, a quem pertence a glória e o domínio pelos séculos dos séculos.
Amém" (1 Pe
4.10,11).
[1] Quarta edição (Richard Baynes, Londres, 1835), p.310.
2 A palavra em grego não é charismata, mas merismoi,
"distribuições" (melhor que a tradução "dons" -ARC), e pode
referir-se à distribuição de poderes, como sugere o
contexto, em vez de dons.
3 As palavras atribuídas ao Senhor ressurreto, de que
"estes sinais hão de acompanhar aqueles que crêem", constam da
chamada "conclusão mais longa" do Evangelho de
Marcos (16.16), reconhecidamente posterior à escrita do
Evangelho. A BJ menciona uma "conclusão mais breve". Muitos eruditos
são da opinião, por causa da evidência fraca
em favor destas conclusões nos manuscritos mais antigos, que
o Evangelho de Marcos terminava abruptamente com o versículo 8 ou, o que é mais
provável, que
originalmente ele tinha uma conclusão que incluía as
aparições de Jesus depois da ressurreição, mas que infelizmente foi perdida. É
no mínimo muito inseguro basear uma
crença no caráter normal dos milagres nesta conclusão mais
longa, já que é praticamente certo que ela não é de Marcos e, por isso, também
não é de Jesus.
4 A. Kuyper, The Work o( lhe Ho/y Spirit (A Obra do Espírito
Santo), 1888 (Funk and Wagnalls, Londres e Nova York, 1900), p. 187.
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