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sexta-feira, 12 de junho de 2015

QUANDO A ESPIRITUALIDADE É ESPIRITUAL?

 

REFLEXÕES

D. A. Carson*

O interesse atual na "espiritualidade" é ao mesmo tempo salutar e assustador. É salutar porque, em sua melhor forma, é infinitamente preferível ao materialismo filosófico assumido que rege muitas pessoas, não apenas no mundo ocidental mas também em diversos outros lugares. É salutar sempre que representa uma revolta consciente contra o profundo senso de irrealidade que aflige muitas igrejas. Falamos em "conhecer", "encontrar-se com" e "adorar" o Deus vivo, porém muitos sentem que os esforços coletivos são superficiais e inautênticos e, em seus momentos mais silenciosos, tentam imaginar o que está errado.

É assustador porque a "espiritualidade" tornou-se um elemento tão mal definido e amorfo que abrange todos os tipos de fenômenos que uma geração anterior de cristãos, mais propensa ao pensamento árduo do que a atual, teria descartado como erro, ou mesmo como "paganismo". Hoje, "espiritualidade" é uma palavra de aplauso isto é, o tipo de palavra que, tão logo pronunciada, todos começam a aplaudir. Em muitos círculos, funciona na esfera "espiritual" assim como a "torta de maçã" na culinária: quem é ousado o suficiente para propor cautela, quanto mais uma crítica? O que se sabe com certeza é que, em geral, o assunto provoca muito interesse.

ALGUMAS DEFINIÇÕES GERAIS, EXPLÍCITAS OU IMPLÍCITAS

Apesar da alegação de Joann Wolski Conn de que, em sua origem, espiritualidade era "um termo cristão das cartas paulinas", ele não é nada disso. É verdade que "espírito" e "espiritual" encontram-se no Novo Testamento, mas, dentre os que escrevem sobre a espiritualidade, pouquíssimos começam com um estudo indutivo de tais termos a fim de estabelecer o que significa "espiritualidade". Como palavra, "espiritualidade" surgiu do pensamento católico francês, embora durante o último século, aproximadamente, tenha sido comum também no protestantismo. Os escritores antigos podiam falar da "vida espiritual" referindo-se a algo bem mais minuciosamente definido do que o sentido de Paulo com "o homem espiritual", em 1 Coríntios 2, mas é esse foco na "vida espiritual" que por fim levou à cunhagem cristã do termo "espiritualidade".

De fato, na história da igreja cristã antes da Reforma, havia muitos elementos diferentes ligados à vida espiritual, dos quais apenas alguns alcançaram proeminência em algum tempo ou espaço: sacramentos, comunidade, oração, ascetismo, martírio, votos de pobreza e/ou celibato, imagens, monasticismo e muito mais. Cada vez mais a vida espiritual passou a ser associada com a busca de perfeição, até onde esse lado da visio Dei consumadora é possível. Assim, ela não se destinava a todos os cristãos; reservava-se para os que particularmente anelavam por Deus. Portanto, embora a espiritualidade (usando o termo anacronicamente) abrangesse toda a vida, englobava toda a vida apenas para alguns fiéis. No começo do século XVIII, Giovanni Scaramelli (1687-1752), da Sociedade de Jesus, tendo por fundamento tradições antigas, distinguiu nitidamente a teologia ascética e a mística como componentes básicos do estudo de uma vida espiritual. A primeira relaciona-se com as práticas às quais todos os cristãos que aspiram à perfeição irão dedicar-se, enquanto a segunda trata dos extraordinários estados de consciência e suas manifestações secundárias durante períodos de união mística com Deus. Assim, a "espiritualidade" tornou-se uma disciplina, a "teologia espiritual", a ser distinguida da teologia dogmática, que nos diz em que devemos crer, e da teologia moral, que nos diz como devemos agir. Tais são as distinções essenciais que regem a abordagem clássica de P. Pourrat.

Em sua história em três volumes, Bouyer buscou uma definição mais precisa: A espiritualidade cristã (ou qualquer outra espiritualidade) distingue-se do dogma pelo fato de, em vez de estudar ou descrever os objetos da fé como se ela estivesse no campo abstrato, analisa as reações que tais objetos provocam na consciência religiosa. Mas, com certeza, não nutre o preconceito pseudocientífico, de fato plenamente extravagante, de que o entendimento dos objetos que polarizam a consciência religiosa é essencialmente estranho a uma compreensão dessa consciência em si. Ao contrário, a espiritualidade estuda essa consciência apenas em sua relação ativa com esses objetos, em sua apreensão real... daquilo em que crê. A teologia dogmática, portanto, deve ser sempre subentendida como base da teologia espiritual, embora esta última só diga respeito aos dados da primeira sob o relacionamento que desenvolvem com a consciência religiosa.

Esse último ponto, que a teologia espiritual pressupõe a teologia dogmática, questão enfatizada por Pourrat e por Bouyer, é hoje negado por alguns autores, que afirmam o oposto: a espiritualidade é o que molda nossa teologia. Devemos experimentar algo antes de passar a articulá-lo em suas formas dogmáticas. Pode-se suspeitar que parte da diferença entre essas duas perspectivas surge da preocupação da primeira em relacionar a dogmática à experiência na experiência da maioria das pessoas, e da preocupação da última em relacionar a experiência à dogmática na gênese e na formação de um movimento.

Vale a pena parar a fim de chamar atenção para diversos aspectos já revelados:

(1) O catolicismo (e a ortodoxia também, quanto a isso) investiu nos estudos sobre a "espiritualidade" com bem mais força do que o protestantismo, devido em grande parte à ênfase (até épocas bem recentes) na busca da perfeição (às vezes imaginada como união mística) por uma subdivisão de cristãos, por cristãos de "elite" (embora obviamente eles nunca pensariam em si mesmos nesses termos), não raramente monásticos. Esse interesse católico tradicional ainda se reflete em detalhes como, por exemplo, os relativos espaços reservados ao assunto nos modernos dicionários de teologia católicos e nos evangélicos ou o número de livros girando em torno do tema da espiritualidade publicados por editoras católicas e por editoras evangélicas.

(2) Ao menos desde o século XVIII, "espiritualidade" podia referir-se a determinadas abordagens do conhecimento de Deus (ainda sendo definido) ou ao estudo dessas abordagens.

(3) A observação parentética "ou qualquer outra espiritualidade" (na longa citação de Bouyer, acima) reflete outro desenvolvimento difícil de analisar. No contexto, refere-se à espiritualidade em religiões não-cristãs: a espiritualidade hindu, a espiritualidade islâmica, a espiritualidade budista, a espiritualidade animista e assim por diante. No contexto da obra de Bouyer um estudo da história da espiritualidade cristã, na maior parte baseado em evidências textuais a espiritualidade não-cristã pode ser uma categoria eminentemente útil: diz respeito a algo como a interação entre dogma e consciência religiosa em religiões não-cristãs, fundamentada, mais uma vez, em evidências textuais (ou outras amplamente fenomenológicas). Mas o dogma relativo é verdadeiro em todos os casos? Isso importa? A "espiritualidade" relacionada a esses sistemas de dogma mutuamente exclusivos é válida, verdadeira, útil ou proveitosa, quando o dogma ao qual está associada não é verdadeiro? Estamos lidando apenas com a mente, a matéria da consciência humana? Ou, se estamos insistindo em que existe uma dimensão transcendente à espiritualidade, será que essa dimensão transcendente é a mesma para o cristão que crê no evangelho e para o animista que está implorando aos espíritos um bebê robusto? Será que adotamos a postura de pluralistas radicais que supõem que virtualmente toda forma de espiritualidade é válida como qualquer outra, e em si isso se torna uma maneira de autenticar a veracidade relativa de todo dogma? Nesse caso, obviamente, deve-se dizer algo impreciso, como por exemplo afirmar que, embora esses sistemas de dogma contradigam nitidamente um ao outro, todos apontam com equivalência para algum sistema maior além da compreensão de qualquer um deles. Voltarei brevemente a tais questões.

Esse aspecto do Vaticano II, a ênfase católica na espiritualidade, tem sido menos associado com a busca de perfeição pela "elite" do que com o crescimento na experiência cristã por todos os católicos. Assim, a Constituição Dogmática da Igreja divulgou um chamado universal à santidade: "todos os fiéis de qualquer classe... são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição de caridade" (L. G. 40). A Constituição sobre a Liturgia Sagrada afirma que o objetivo primário de todo o Concílio Vaticano II é intensificar a espiritualidade cristã, "o crescimento diário de católicos no viver cristão" (S. C. 1). Essa é considerada uma das razões de se tornarem mais acessíveis a liturgia e, em especial, a missa (S. C. 2). Ao mesmo tempo, dificilmente pode-se negar que o catolicismo pós-Vaticano II favoreceu uma diversidade de concepções sobre a espiritualidade, muitas das quais cada vez menos eucaristicamente concentradas. Hoje, dá-se muita atenção à espiritualidade feminista, à espiritualidade de uma vida de pobreza ou de transformação social, e assim por diante. Grande parte das publicações contemporâneas na área da espiritualidade explora as dimensões consideradas complementares: a filosófica, a psicológica, a teológica, a mística, a social e assim por diante. Torna-se excessivamente difícil excluir algo, praticamente qualquer coisa, do alcance da espiritualidade, desde que haja algum tipo de componente experiência no meio. Nesse ambiente, a busca de tal "espiritualidade" está longe de ser um interesse meramente católico. Nessa perspectiva, uma das mais recentes definições de espiritualidade que apareceu em uma publicação católica é totalmente coerente, mesmo sendo tão abrangente que se torna bastante desalentadora:

O termo espiritualidade refere-se tanto a uma experiência vivida quanto a uma disciplina acadêmica. Para os cristãos, significa uma vida inteira entendida, sentida, imaginada e decidida no relacionamento com Deus, em Cristo Jesus, capacitada pelo Espírito. Também indica o estudo interdisciplinar dessa experiência religiosa, incluindo a tentativa de promover seu desenvolvimento maduro.

Durante aproximadamente o último século, a "espiritualidade" tornou-se parte do vocabulário geral dos protestantes. Até as últimas décadas, quando a concepção de espiritualidade do protestantismo liberal expandiu-se gradualmente, chegando mais ou menos às mesmas dimensões daquela do catolicismo pós-Vaticano II, o interesse do protestantismo na espiritualidade encontrava-se amplamente associado com a piedade e com a vida de devoção no evangelismo tradicional. Embora "espiritualidade" não fosse um termo em voga entre os puritanos ingleses, por exemplo, é difícil não apreciar sua ênfase na conformidade a Cristo, no exame moral pessoal, na confissão dos pecados, na meditação na Palavra, no uso pleno dos "meios de graça". Dentro dessa tradição, a obra A Serious Call to a Devout and Holy Life [Um Chamado Sério a uma Vida Devota e Santa], escrita por William Law em 1728, é um clássico em espiritualidade. Bem mais recentemente, e de uma estrutura doutrinal um pouco diversa dentro da herança do evangelismo, Richard Foster e Richard Lovelace divulgaram chamados de alguma forma semelhantes. Tendo por base os puritanos, não são poucas as obras de Packer essencialmente planejadas, pelo menos em parte, para nutrir a vida espiritual.

Essa é a matriz, então, a partir da qual hoje são produzidos tantos livros e artigos sobre a espiritualidade (independentemente do que a palavra signifique!). Eu mal comecei a mencionar os recursos disponíveis. Por exemplo, há uma literatura considerável sobre a espiritualidade ortodoxa. Talvez um dos pontos de maior acesso a tal herança esteja num pequeno livro escrito por um monge anônimo da igreja oriental. Uma obra bastante notável explora os padrões de vida de diversos cristãos católicos e ortodoxos preparados para ser "loucos por causa de Cristo". A ênfase medieval associando a pobreza voluntária à perfeição ainda encontra seus defensores. Hoje, o grande desenvolvimento da espiritualidade feminista está provocando, a partir das pressuposições dessa herança, reflexões sobre a espiritualidade masculina. Talvez os leitores interessados na compreensão da espiritualidade fora do cristianismo devam começar com a espiritualidade judaica. Enquanto os evangélicos escrevem não só comentários técnicos sobre livros bíblicos, mas também comentários para "meditação", os católicos escrevem não apenas comentários técnicos, mas comentários "espirituais". Recentemente, um protestante adotou uma orientação algo similar: o livro de Barton sobre os evangelhos não está interessado na abordagem "devocional", mas em examinar os evangelhos para descobrir o que podem nos dizer acerca do "sentido da presença divina e do viver à luz de tal presença". Ele fundamenta grande parte da "espiritualidade" dos evangelhos isto é, o sentido da presença divina ilustrado nos evangelhos ou por eles defendido na espiritualidade de Jesus, ou seja, na experiência do próprio Jesus quanto à presença divina. Há muito mais de Jesus como exemplo ou protótipo do que como Salvador ou Senhor. Os dois temas não precisam ser antitéticos, mas um deles quase não aparece no livro.

A disciplina do estudo histórico da espiritualidade também continua a passos largos, em geral do ponto de vista de uma forte defesa. Comparadas às histórias anteriores de Pourrat e Bouyer, essas obras tendem a refletir definições (explícitas ou implícitas) de espiritualidade muito mais amplas, típicas das últimas três décadas que sofreram o impacto vigoroso do pluralismo filosófico. Assim, em um livro sobre a espiritualidade cristã asiática, o discurso inicial, de Samuel Rayan, teólogo jesuíta da Índia, propõe esta definição de espiritualidade: "Ser espiritual é ser cada vez mais aberto e capaz de reagir à realidade". Outra história recente da espiritualidade enfatiza continuamente a importância da espiritualidade feminista e alegra-se porque a espiritualidade cristã é plural (ortodoxa, católica, reformada, seja o que for), devendo tornar-se mais culturalmente diversa, mesmo enquanto adverte que, "nesse movimento para fora, não é útil estar desarraigado ou vagar sem rumo de uma cultura espiritual para outra em busca de um lugar para sentir-se à vontade. A fim de entrar proveitosamente no desconhecido, é preciso ter uma percepção real do lugar a que se pertence". Um livro recente sobre a espiritualidade reformada inclui uma amplitude de perspectivas que muitos cristãos na tradição reformada teriam dificuldades em reconhecer. Até algumas obras modernas importantes sobre teologia foram profundamente influenciadas por tendências contemporâneas em espiritualidade.

Portanto, meu interesse nesse panorama condensado de espiritualidade é trazer à luz as definições implícitas e explícitas apresentadas pela literatura. Meu esboço não foi nem profundo nem amplo, mas talvez tenha mostrado evidências suficientes para algumas reflexões proveitosas sobre os problemas de definição.

REFLEXÕES SOBRE O EMPREGO GERAL DE "ESPIRITUALIDADE"

A seguir, nesta seção, desejo articular diversas inferências a partir da literatura citada acima quanto ao modo em que se usa "espiritualidade" como termo.

(1) Espiritualidade é um construto teológico. Não há como obter acesso direto ao que é bom ou mal sobre a espiritualidade, ou acerca de qualquer estudo da espiritualidade em particular, recorrendo, por exemplo, a textos bíblicos que discutem a espiritualidade, pois, no que diz respeito ao termo, nenhum deles o faz.

Além disso, não é um construto teológico cujos componentes encontram ampla aceitação. Por exemplo, a doutrina da trindade também é um construto teológico. Pode ser crido ou negado, articulado de diversas maneiras, colocado no sistema da teologia e da vida cristãs com ordens muito diferentes; mas basicamente o conteúdo da doutrina, não menos que a disposição de suas partes teológicas integrantes, não é questionado entre os pensadores informados. Em contraste, a espiritualidade é um construto teológico sintético que varia quanto à pessoa: pode-se sempre perguntar quais componentes integram o termo particular sustentado ou afirmado por determinado escritor e quais elementos são descartados. Apenas raramente essas questões tornam-se explícitas; os leitores tentam inferir constantemente que suportes teológicos estão pressupostos.

(2) Pelo fato de teologias mutuamente contraditórias poderem envolver essas definições de espiritualidade variáveis quanto à pessoa, o grau de concordância real entre os que analisam o tópico pode ser mínimo. Por exemplo, o Centro Annand para Crescimento Espiritual, da Berkeley Divinity School, em Yale, nos Estados Unidos, de acordo com seu folheto, tem em seu conselho fortes sincretista s, protestantes liberais, católicos e um mestre espiritual hindu versado na tradição védica; seus professores incluem carismáticos episcopais locais. Permanece o fato de que as diferentes compreensões de espiritualidade representadas por religiões mundiais distintas precisam de um delineamento cuidadoso. A total diversidade das estruturas teológicas implícitas significa que o sentido de "espiritualidade" degenera em algo amorfo como "uma experiência do numinoso", em que cada um carrega o "numinoso" com o que é certo a seus olhos. Pressupõe-se que tais experiências do numinoso sejam algo bom, qualquer que seja o numinoso. Repentinamente, a espiritualidade torna-se um pouco como um "cavalo de Tróia", que introduz o mais radical pluralismo religioso no que é nominalmente um empreendimento cristão.

De uma perspectiva cristã, a adoração não é apenas um verbo, como Robert Webber gosta de nos lembrar, mas um verbo transitivo, e o mais importante sobre esse verbo transitivo é seu objeto direto. Nós adoramos a Deus, o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e todas as outras adorações de certa forma são idólatras, por mais que os dons da graça comum tenham preservado dentro de tal adoração alheia alguma percepção das realidades espirituais. Em outras palavras, nem toda experiência do numinoso, seja entendida psicologicamente, seja como algum envolvimento com o mundo espiritual, pode ser considerada adequadamente uma experiência "espiritual" em algum sentido neotestamentário. Em suma, nem toda espiritualidade é espiritual.

(3) A espiritualidade pode evoluir para uma técnica. Pela aplicação de certas disciplinas estudo, jejum, oração, autonegação, seja o que for busca-se uma experiência mais íntima do numinoso, independentemente de como este é entendido. Assim, as duas perguntas a fazer são: (a) até que ponto tais técnicas são neutras? (b) até que ponto são transferíveis?

Essas não constituem questões fáceis para as quais há respostas que generalizem, embora seja razoavelmente simples pensar em exemplos que ilustram problemas muito diferentes.

Considere estes quatro exemplos:

(a) Para os hindus cultos, parte da espiritualidade (nesse sentido de técnica e disciplina) será a leitura cuidadosa do Vedas e de outras escrituras hindus. Com que facilidade isso pode ser transferido para, digamos, o cristianismo evangélico? Será que a própria leitura de textos sagrados, ou de escritos considerados sagrados, não é neutra?

Como cristão, eu responderia dizendo que, em determinado nível, o exemplo hindu pode ser razoavelmente bem transferido para o cristianismo. Obviamente, o que se lê é diferente: nossas Escrituras não são iguais às deles. Entretanto, certamente iríamos querer associar a espiritualidade cristã à leitura reflexiva da Bíblia. Portanto, suponho que se possa dizer que essa prática, essa técnica, é transferível. Mas exatamente o que está sendo transferido? Se for algo como "a leitura de textos considerados sagrados", então, embora a prática seja transferível, não é neutra. Pois há muitos textos considerados sagrados que não são, a meu ver, nada disso incluindo o Livro de Mórmon e o Bhagavad Gita. Assim, eu nego que a leitura de escritos considerados sagrados seja algo inerentemente bom; nego que o ato seja neutro. É apenas o ato mecânico de leitura que é neutro o que certamente não significa muito.

(b) Suponha, então, que eu me volte para os exercícios de respiração e concentração ligados à ioga. Até que ponto podem ser transferidos para o cristianismo? Eles são neutros?

Em determinado nível, com certeza os exercícios respiratórios são intrinsecamente neutros: aprende-se uma série um pouco diferente na preparação para o parto. Mas a ligação entre certos exercícios respiratórios e a concentração em um ponto negro sobre uma amplitude branca, junto com o canto de mantras a fim de atingir um estado de dissociação ligado ao alcance de um estado superior de "espiritualidade", é outra coisa. Quanto disso é transferível para o cristianismo? Não muito; certamente não o canto de mantras, menos ainda o tipo de meditação caracterizada pela concentração em um ponto sobre um espaço em branco. Imagino que determinados exercícios respiratórios e de relaxamento que ajudam algumas pessoas tensas a descontrair-se são irrepreensíveis; e, se o propósito de tal relaxamento for capacitar a pessoa a concentrar-se na meditação e na oração com a Bíblia, creio que isso possa ser rotulado como parte de uma técnica para o crescimento na espiritualidade cristã. Mas está ficando demasiadamente remoto: é mais uma técnica de preparação para a disciplina que, então, poderia ser genuinamente chamada cristã.

(c) Considere a Ceia do Senhor, a santa comunhão. Será que a participação de um cristão autêntico sempre é algo bom? Com certeza, se há alguma disciplina espiritual não neutra, é esta, não é? Mas será transferível?

Mais uma vez, as respostas não são tão simples quanto se gostaria. Seguramente, nada de significativo aqui é transferível. É verdade que algumas outras religiões têm rituais de comida, mas todas as associações ligadas à mesa do Senhor diferem radicalmente dos rituais de alimentação alheios. O simples ato de comer pode ser neutro, mas a mesa do Senhor não é um simples ato de comer.

Nem a participação, mesmo por cristãos autênticos, sempre é algo bom. Para muitos dos problemas na igreja coríntia, Paulo tem um tipo de resposta "sim, mas": "... é bom que o homem não toque mulher; mas, por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa..." (1 Co 7.12); "... sabemos que o ídolo de si mesmo nada é no mundo... Entretanto, não há esse conhecimento em todos..." (1 Co 8.4,7); e assim por diante. No entanto, com respeito à mesa do Senhor, Paulo escreve: "Nisto, porém, que vos prescrevo, não vos louvo, porquanto vos ajuntais não para melhor; e, sim, para pior" (1 Co 11.17). Fica evidente que isso não se dá porque a celebração da ceia do Senhor torna-se um ato intrinsecamente mau, mas pelo fato de os relacionamentos dentro da congregação serem egoístas e irrefletidos, e de o pecado não ser nem confessado, nem reconhecido. Assim, aqui temos uma disciplina espiritual que não é neutra (com certeza é intrinsecamente boa), não transferível, mas que pode ser absolutamente má, não em aspectos intrínsecos, mas devido a outros pecados da congregação.

(d) E quanto aos diferentes votos de autonegação feitos por monásticos medievais? Podem ser transferidos? São imparciais, de modo que possam ser desligados do catolicismo medieval?

Certamente nossa geração pode lidar com um pouco de autodisciplina. Recordamos, por exemplo, a determinação de Paulo em 1 Coríntios 9.24-27 e envergonhamo-nos de nossa preguiça e indolência. Mas os votos de castidade não são algo com que um cristão casado deva se comprometer, a menos que haja consentimento mútuo com o cônjuge, durante um período estritamente limitado e a fim de dedicar tempo à oração (1 Co 7.5). Um voto de castidade feito por um celibatário pode ser algo bom, mas não se for meramente uma tentativa frustrada de reprimir a concupiscência (1 Co 7.9). Talvez os votos de pobreza ou relativa miséria sejam totalmente salutares nesta época hedonística e devassa, mas eles poderiam também gerar orgulho ou favorecer a teologia do mérito. E os votos de silêncio? Um pouco de sossego em nossos dias barulhentos e auto-expressivos certamente faria bem. Mas com que facilidade, por exemplo, os votos de silêncio trapistas feitos por Thomas Merton podem ser dissociados de sua devoção profunda a Maria como mãe de Deus? Será que isso encontra algum lugar em um sistema de pensamento que verdadeiramente aprendeu a liberdade da graça de Deus proporcionada pela morte e ressurreição de seu Filho Jesus Cristo?

Em suma, não se podem pressupor abordagens da espiritualidade que são pouco mais do que discussões de técnicas, como se não houvesse obstáculos ocultos a evitar.

ALGUMAS PRIORIDADES PARA OS CRISTÃOS

Escrevo a partir de convicções evangélicas. Os breves pontos a seguir refletem com sinceridade tais compromissos, embora obviamente não possa defendê-los aqui. Além disso, as poucas questões que abordo são mais de investigação do que de articulação dogmática: quase todos os itens poderiam abranger um capítulo extenso.

Temo que muitos carismáticos e, cada vez mais, diversos evangélicos não-carismáticos, tendo saído das sombras de uma herança razoavelmente limitada e paroquial para as correntes mais amplas da história eclesiástica, corram o perigo de supercompensar e aceitar quase tudo, desde que se encaixe na rubrica "espiritualidade" (aplausos!). Ao mesmo tempo, contudo, há muito a aprender sobre a vida espiritual, assim como sobre teologia, com muitos daqueles de quem discordamos. Se a espiritualidade, com toda sua imprecisão intelectual, não deve tornar-se o novo summum bonum pelo qual todas as coisas serão testadas, devendo ser ela mesma submetida à prova das Escrituras Sagradas, que prioridades podem ajudar-nos a manter uma perspectiva saudável sem retroceder para um tradicionalismo arraigado?

(1) Deve-se pensar na espiritualidade em associação com o evangelho. Talvez haja algum valor heurístico e histórico na concepção da espiritualidade em termos puramente neutros ("a experiência do numinoso e o estudo dessa experiência" ou algo semelhante), mas, de uma perspectiva confessional e cristã, é pior do que inútil: é perigosa. Falando claramente, se o evangelho é verdadeiro, qual será o valor, daqui a cinqüenta bilhões de anos, de gastar tempo nesta vida meditando em um ponto negro sobre uma vastidão branca, enquanto são cantados mantras? Questões sobre a natureza da espiritualidade, sobre o propósito da suposta experiência do transcendente, sobre a natureza do Deus que é a fonte última da experiência, sobre o local da revelação que ele fez de si mesmo e sobre as técnicas e formas pelas quais podemos conhecê-lo melhor ostensivamente todas essas devem ser submetidas ao teste do evangelho. Pois é o evangelho o poder de Deus para a salvação; é pela fé no Filho de Deus que conhecemos o Pai; é pela cruz e ressurreição que nós, que estávamos alienados de Deus, fomos reconciliados com nosso Criador, Juiz e Redentor.

(2) A reflexão cristã sobre a espiritualidade deve agir de maneira centrífuga. Durante aproximadamente os últimos 20 anos tem havido uma tendência bastante assustadora de assumir o centro sem capacidade real de articulação e, então, gravitar para a periferia. De fato, a tendência tem sido enfocar algum elemento na periferia, que então atrai nosso entusiasmo, interesse, tempo. Isso não significa que os cristãos devem evitar considerar plenamente os programas transformadores na periferia: nós devemos. Mas, se dedicamos todo nosso tempo e nosso entusiasmo ao aborto, às formas de adoração, à ordenação de mulheres, ao governo da igreja, às técnicas de aconselhamento, à última publicação sociológica ou ao mais bem divulgado seminário sobre casamento, de maneira imensamente desligada do centro da teologia bíblica, então mais cedo ou mais tarde a periferia correrá o perigo de deslocar o centro pelo menos em nossas inclinações e energias, e talvez em nossa teologia (ou na de nossos filhos).

É assim com a espiritualidade. Se a espiritualidade torna-se um fim em si, desligado do centro e em grande parte sem normas bíblicas ou teológicas para defini-la e fundamentá-la no evangelho objetivo, então a busca da espiritualidade, embora obscuramente descrita, irá degenerar em nada mais do que a procura de certos tipos de experiência. Devo reiterar que não estou, por essa razão, dando por perdida toda busca de todas as formas de espiritualidade: falarei mais sobre isso no próximo item. Mas deve-se refletir sobre a espiritualidade e procurá-la a partir da matriz da teologia bíblica central.

(3) Ao mesmo tempo, é justo suspeitarmos de formas de teologia cuja ênfase total esteja em sistemas de pensamento coerentes que requerem fé, dedicação e obediência, mas não comprometem os sentimentos e muito menos favorecem uma percepção ativa da presença de Deus. Se o reino de Deus tem que ver com "justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo" (Rm 14.17), não devemos reduzi-lo a justiça e sistemas de pensamento. O Espírito que Jesus transmitiu a seus seguidores é o Espírito anunciado como parte da novidade da nova aliança (Ez 36/Jo 3; Jl 2/At 2): ele não apenas condena o mundo (Jo 16), mas habita nos cristãos (Rm 8.9), guiando-os (Rm 8.14) e testificando com o espírito deles que são filhos de Deus (Rm 8.16).

Isso não significa em absoluto sugerir que a experiência da presença do Deus transcendente/pessoal da Bíblia deva ser considerada algo totalmente à parte do viver cristão, da autodisciplina, do amor pelos outros, do louvor solene e entusiástico, do ódio ao pecado, da conformidade a Cristo, da confissão e do arrependimento contínuos e do crescimento na compreensão da Palavra de Deus, entre outras coisas, como fatores distintos e separados de qualquer experiência do Espírito. O Espírito torna-se parte do credo, nada mais. Às vezes essa postura é simplesmente uma reação exagerada aos excessos óbvios do movimento carismático. Mas, seja qual for a causa, é ao mesmo tempo contra as Escrituras e contra toda a herança do melhor do cristianismo, em que homens e mulheres, pela graça de Deus, conhecem a Deus. É verdade que o conhecimento de Deus, mediado pelo Espírito, acompanha todos os itens acima alistados e outros mais; contudo, é o conhecimento real do Deus vivo, não uma simples imagem mental (como, por exemplo, uma imagem mental de Peter Pan), cujo único propósito concreto é ordenar o sistema de pensamento, que chamamos de teologia.

Certamente, em épocas de avivamento (uso o termo em seu sentido histórico, não em um ou mais de seus significados modernos e corrompidos), mas também em outros momentos, os cristãos conhecem a presença de Deus de maneira tão poderosa que caminham diante dele com uma reverência santa e um reconhecimento genuíno e persistente de sua majestade e graça tais que transformam vidas. Se o conhecimento do Deus verdadeiro e de seu Filho Jesus Cristo que ele enviou significa vida eterna (Jo 17.3), devemos analisar com muito cuidado o que é realmente o conhecimento de Deus e aceitá-lo totalmente. Se tal conhecimento de Deus que transforma vidas encontra-se no centro do significado da "espiritualidade", permanecendo assim contra um apego meramente tradicional a um credo, independentemente de quão ortodoxo seja esse credo, então ressaltemos a espiritualidade.

(4) Todavia, deve-se delinear cuidadosamente o que Deus usa para favorecer esse tipo de espiritualidade do evangelho. Apenas o próprio Deus dá a vida; é Deus quem se mostra, não só nos grandes atos da história da redenção, mas por seu espírito, aos homens e mulheres "naturais" (1 Co 2.14) que não têm o Espírito de Deus e não podem entender as coisas de Deus. Ele se "revela" aos cristãos que amadurecem e assumem uma visão bíblica das coisas (Fp 3.15). Em geral, porém, Deus usa meios. Quais são eles?

É exatamente nesse ponto que os evangélicos precisam recuperar sua herança. As pessoas falam da espiritualidade dos sacramentos, da espiritualidade da pobreza ou da espiritualidade do silêncio. É verdade que Deus pode tornar-se muito real a seu povo no contexto da pobreza; é verdade que a celebração comunitária da Ceia do Senhor pode ser um momento de auto-exame, de confissão, de perdão, de alegria no Espírito Santo. Há diversos meios de graça. Mas talvez o meio de graça mais importante, com certeza o meio de graça quase não mencionado nas publicações atuais sobre a espiritualidade, é a Palavra de Deus.

Na noite em que foi traído, Jesus orou: "Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade" (Jo 17.17) e nunca haverá muita santificação fora da palavra da verdade. É a chegada da Palavra de Deus que traz a luz; é a meditação constante na lei de Deus que separa o sábio do ímpio, o justo do injusto (Sl 1). Não nego que determinados tipos de estudo bíblico possam ser singularmente áridos, céticos, meramente formais, tais como certas participações na mesa do Senhor podem fazer mais mal do que bem (1 Co 11.17 e ss.). Mas a forte ênfase das Escrituras na compreensão, na apreensão, na meditação, na proclamação, na memorização ("esconder no coração"), na leitura e no ouvir da palavra de Deus é tão notável que corremos sério risco se a ignorarmos. Eis por que o melhor da herança evangélica sempre ressaltou o que pode ser chamado de espiritualidade da Palavra.

É dentro dessa estrutura que outras "técnicas", adequadamente dispostas, podem ter certo valor. Se a autonegação for apenas uma tentativa de confiar-se a Deus ou um modo de sentir-se bem consigo mesmo (um sentimento então confundido como espiritual), seguramente é perigosa. Mas, se a autonegação for parte de nossa atitude de gratidão e fé ao Deus que manifestou a maior de todas as autonegações na morte de seu Filho, e se assim ajudar nossa concentração em sua Palavra, nossa obediência a ela e nosso deleite nela, então certamente é algo bom que favorecerá o crescimento espiritual. Pode-se empregar a maioria das "técnicas" apresentadas com a mesma perspectiva concentrada na Palavra controlando a avaliação: diários, dias de meditação, grupos de responsabilidade/oração e assim por diante.

(5) Finalmente, tal reflexão concentrada na Palavra irá remeter-nos ao fato de que a espiritualidade, conforme vimos, é um construto teológico. Seremos forçados a rever nosso construto sob aspectos do que encontramos nas Escrituras. Se a espiritualidade está relacionada ao conhecimento de Deus por Seu Espírito, então a experiência da espiritualidade genuína deve ser ligada ao significado da posse do Espírito. Em certo sentido, portanto, todos os que, pela graça de Deus, praticam a fé salvadora em Cristo Jesus, têm o Espírito (Rm 8.9) e são "espirituais" (1 Co 2.14-15). Mas então devemos "andar no Espírito" (Gl 5.16), e isso significa eliminar conscientemente os "atos de natureza pecaminosa" e produzir o "fruto do Espírito": há uma dimensão da espiritualidade profundamente moral e ética. O Espírito também é aquele que capacita e habilita os cristãos a testemunhar de Jesus (Jo 15.26-27; At 4.8; etc.): há uma dimensão querigmática da espiritualidade. O Espírito é arrabo, penhor e garantia da herança prometida: há uma dimensão escatológica da espiritualidade, como a noiva, a igreja, participa do Espírito, clamando: "Vem, Senhor Jesus" (Ap 22). E assim podemos continuar, acrescentando dimensões a qualquer construto da espiritualidade controlada pela Palavra de Deus, corrigindo a nós mesmos e à nossa experiência pelas Escrituras, de forma que possamos desfrutar a plenitude da herança que é nossa em Jesus Cristo, enquanto permanecemos totalmente relutantes em ser seduzidos por alguma novidade passageira. Clamemos a Deus para que todas nossas expressões de espiritualidade sejam verdadeiramente espirituais.


* D. A. Carson, Ph.D., é professor de Novo Testamento na Trinity Evangelical Divinity School, nos Estados Unidos. É autor prolífico, com mais de 20 livros.

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