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terça-feira, 1 de julho de 2014

O que é Fé Reformada?



Dr. John Richard de Witt


Introdução – Definindo a Questão

Uma das grandes questões que nós temos que encarar constantemente, como cristãos evangélicos de convicções reformadas, é a questão da identidade. O Assunto apresentado através daquela pergunta reiterada com freqüência : O que é que significa ser reformado? E ainda mais precisamente: O que significa ser reformado não apenas no sentido histórico da palavra, mas no contexto atual, na situação em que nos encontramos na igreja, na nação e no mundo?

Temos a intenção, é claro, de ser fiéis à nossa herança, à grande tradição na qual nós nos encontramos e que deu expressão tão brilhante e convincente às verdades da Palavra de Deus, afirmadas pela igreja Cristã antiga e, num certo sentido, redescobertas na época da Reforma protestante. Mas esta nossa intenção, de nos atermos ao que é bom, requer mais do que uma afirmação de determinação. Ela também demanda definição contemporânea e claramente clama por um delineamento que fará, para nosso próprio tempo, o que outros fizeram em gerações anteriores. Sempre temos de nos relembrar, a nós mesmos, que não fazemos teologia num vácuo; que a ciência da teologia não começou com a nossa entrada no mundo. Às vezes tem-se a impressão, pela forma como alguns pregam e escrevem, que toda a cristandade esperava pelo advento dos seus ministérios, e que é somente por meio deles, e pelo que têm a dizer, que a fé cristã começou a fazer sentido e a ser entendida em todas as suas implicações. Mas tal abordagem é totalmente inaceitável; aqueles que falam dessa maneira introduzem, ao mesmo tempo, seus próprios absurdos como se eles fossem o próprio evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Devem, assim, ser repreendidos e seu ensino deve ser repudiado.


Deveríamos dizer de uma vez por todas que, mesmo a partir de uma perspectiva histórica, não é fácil chegar a uma definição breve e satisfatória do que significa ser Reformado. Essa é sem dúvida a questão; isso por uma série de razões.

Existem Fontes de Autoridade?

Em primeiro lugar porque não existe uma única fonte à qual poderíamos recorrer em busca de uma expressão que defina com autoridade a fé Reformada. Certamente devemos muito a João Calvino. Mas também devemos grandemente a muitos outros: a Agostinho por exemplo, bem como a Anselmo, e a Martinho Lutero. Além do mais, esses homens, não importa quão grandes possam ter sido, eles não tinham a pretensão de estar falando com uma autoridade equivalente à autoridade da revelação divina, ou de forma tal que toda a igreja fosse constrangida a lhes obedecer. No Cristianismo evangélico não existe papa que pode falar ex catedra, e assim impor pronunciamentos infalíveis aos fiéis. Freqüentemente digo aos meus alunos que, se é para aprender qual foi a posição Reformada nesse ou naquele ponto de doutrina – se for para adquirirmos qualquer coisa como um entendimento oficial da fé Reformada –  temos que olhar não para os escritos dos teólogos, mas sim para as confissões das igrejas: a confissão Belga, o catecismo de Heidelberg, a Segunda Confissão Helvética, os Cânones de Dort, a Confissão de Fé de Westminster e seus respectivos catecismos. Assim chegamos mais próximo de um consensus ecclesiae, um consenso da igreja, nesses momentos específicos da história, com relação ao ensino da palavra de Deus.

Diferenças de Opiniões sobre as Definições:
Também é verdade que ser Reformado quer dizer coisas diferentes para pessoas diferentes. Alguns tendem a identificar a fé Reformada com os cinco pontos do calvinismo, esquecendo que aqueles cinco pontos são apenas uma expressão da fé –constituindo-se uma expressão importante – contra um erro que se infiltrou no começo do século dezessete. Os Cânones de Dort continuam sendo de extremo valor; e eu particularmente acho inconcebível que qualquer pessoa possa afirmar ser reformado se os repudiar. Acima de qualquer disputa no entanto, a Fé Reformada é muito mais abrangente e de alcance muito mais amplo do que aqueles cinco pontos. É muito injusto àquela fé quando alguém restringe seu conteúdo a uma única área de doutrina, por mais essencial que seja.

É possível Identificar Características da Fé Reformada?
Isso nos leva a considerar, até que ponto pode ser possível isolar e identificar certos temas característicos da fé Reformada? Como poderemos tentar descrever a genialidade  desta fé? O que pode ser identificado no Calvinismo que seja distinto e qual a melhor definição que pode aproximar-se do seu conceito completo?

Muitas respostas a essas perguntas foram dadas, nenhuma delas totalmente satisfatória. No entanto não devemos perder a esperança. Sugiro que nós aqui não devemos pensar meramente num único tema dominante, mas sim numa série de temas que se relacionam uns com os outros e que contribuem, cada um na sua própria forma, para uma compreensão maravilhosamente harmônica e eminentemente bíblica  da fé Cristã. Esses temas não são isolados uns dos outros; mas se encaixam uns nos outros; eles são os fios verticais e horizontais que se entrelaçam formando o tecido da nossa posição teológica e espiritual. Eles não devem ser entendidos de maneira desconexa, sem relação, mas devem antes ser tomados como um conjunto. Mencionarei vários  deles agora; admito porem que os temas que incluo não excluem outros e que a minha tentativa de discutir aquilo que constitui a genialidade da fé Reformada é uma discussão preliminar e provisória.

Os Temas Dominantes da Fé Reformada.
1) A Doutrina das Escrituras: Em primeiro lugar, extremamente básica para a fé Reformada é a sua doutrina das Escrituras. De fato, num ensaio recente em que procura definir o tema em que a fé Reformada encontra sua singularidade, o Professor Fred H. Klooster sugere que pode se dizer ser a doutrina da Escritura '‘toda e por inteiro'’ (sola e tota Scriptura).1 Num certo sentido Doutor Klooster está certo segundo qualquer padrão. A Reforma redescobriu e acentuou de novo e autoridade da Bíblia. Ela derrubou a tirania de uma hierarquia eclesiástica corrupta que se tinha colocado acima da Palavra de Deus. A Reforma e repudiou a autoridade da tradição eclesiástica coordenada com aquela palavra, insistindo, com um vigor proveniente de uma recém descoberta verdade, de que Jesus é Mestre em Sua própria casa; que Ele fala ao Seu povo através da Sua Palavra; e que esta “palavra é o meio pelo qual Ele chama pecadores para Si, reinando e subordinando-os ao Seu senhorio”.

Atualmente um amplo debate está se alastrando sobre a questão da inspiração e sobre um assunto correlato: a inerrância das Escrituras. Verifica-se um endurecimento notável das linhas em todas as frentes: alguns considerando heréticos aqueles que não concordam com sua própria abordagem da posição, apesar deles poderem ser Cristãos evangélicos e de viverem em harmonia com as principais doutrinas da fé; outros, declarando que são obscurantistas e anti-intelectuais aqueles que querem insistir no caráter divino da palavra deDeus.2

Não sabemos, com detalhe, como foi que Deus deu a Sua Palavra. Na verdade, sabemos que Ele deu partes da Bíblia de maneira diferente de outras partes: os dez mandamentos por exemplo, foram escritos pelo dedo do próprio Deus, enquanto que os Evangelhos foram escritos por meio de lembranças inspiradas, o uso de testemunhas, e – no caso de Lucas nos é dito especificamente – investigação histórica, e tudo isso, além de sua forma peculiar, com um propósito teológico muito definido em mente. Também é perfeitamente aparente que a humanidade e a individualidade dos escritores das Escrituras foram totalmente reconhecidas e levadas em consideração pelo Espírito Santo no processo de inspiração. Como resultado disso, vemos que Amós e Isaías escreveram livros muito diferentes, com estilos muito diferentes, mostrando origens muito diferentes; Paulo e João, semelhantemente, demonstram qualidades marcantes de suas próprias mentes e corações, dando expressão a diferentes aspectos da verdade, escrevendo em estilos  incrivelmente diferentes, demonstrando igualmente experiências  e intelectos afiados e exaltados, no entanto totalmente distintos. Tudo isso não deveria causar  inquietação alguma. Pelo contrário, deveria causar maior adoração e louvor a Deus, de nossa parte; a Deus que, por meio da superintendência soberana do Seu Espírito, nos deu a Sua Palavra de tal forma que Isaías continuou sendo Isaías em tudo que escreveu, e Paulo continuou sendo Paulo, enquanto que o resultado é a santa e infalível Palavra de Deus.

Na tradição Reformada no entanto, em sua melhor e mais elevada forma, a ênfase não caiu na maneira de inspiração, ou numa definição técnica do significado dos vários atributos da Escritura tomados por eles mesmos (sua perfeição, clareza, suficiência e necessidade), mas na sua autoridade. É quando abordamos as Escrituras desta perspectiva, eu creio, que somos capazes de compreender o significado dos vários adjetivos que usamos para descrever a Bíblia. A Bíblia é autoritativa: e muito mais do que isso, ela é absolutamente, e em última instância, autoritativa. Ela não erra e não pode errar, e nunca jamais nos desviará. Podemos repousar no seu ensino, confiar nela completamente, depender dela para tudo que precisamos saber para viver e morrer de maneira feliz.3 “Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem”, afirma a Confissão de Fé de Westminster, “ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens”. 4 Quando as Escrituras falam, então, nós obedecemos. Quando ela afirma a verdade, nós submetemos nossos corações e nossas mentes a ela com alegria e com regozijo.

Mas com base em quê? Qual é a base para a nossa aceitação da autoridade das Escrituras? Como é que sabemos o que afirmamos ser verdade? Estas questões não são novas, e continuamos a lutar com elas. Estamos persuadidos da autoridade das Escrituras porque podemos desvendar todos os seus segredos, resolver toda dificuldade, e harmonizar cada aparente discrepância? Porque com nossas próprias mentes somos capazes de desvendar e penetrar seus mistérios? Aqui, Calvino – o teólogo do Espírito Santo –  é de ajuda inestimável para nós, e dando seqüência a Calvino temos a Confissão de Fé de Westminster. Nós sustentamos que a Bíblia é um livro singular: vemos a sua singularidade e somos por ela afetados. Sua unidade extraordinária, apesar de ter sido escrita ao longo de vários séculos, seu estilo majestoso, seu conteúdo glorioso, sua consistência maravilhosa, seu registro marcante de profecia e do seu cumprimento – todas estas coisas nos movem a uma piedosa exclamação. Mas não se trata de nenhuma dessas coisas, nem todas elas tomadas juntas, sendo citadas, que nos convencem, nos persuadem e nos movem a obedecê-la. Antes, a base de autoridade indispensável, bíblica e singularmente convincente, é , como Calvino jamais se cansou em insistir, o testemunho do Espírito Santo. Nós cremos na Bíblia porque ela é  a Palavra de Deus: mas nós sabemos que é a Palavra de Deus por causa do testemunho do Espírito Santo. Quando falhamos em compreender isso, quando nós separamos a autoridade das Escrituras do testemunho do Espírito – estamos ao mesmo tempo em perigo de esfriamento espiritual e somos presas fáceis de debates estéreis que são improdutivos e, no final, insensatos.

Na tradição Reformada, portanto, nossa doutrina, e também nosso sistema organizacional, nosso louvor, nossa vida pública e privada como cristãos, bem como aqueles que fazem parte da igreja, estão sob a autoridade suprema da voz do Deus vivo falando a nós nas Escrituras. Pois para nós a Bíblia não é simplesmente um livro, mas trata-se do livro de Deus: não é apenas uma coletânea de proposições, mas tratam-se das palavras do Senhor Vivente. “Credibilidade de Doutrina”, disse Calvino, “não é estabelecida até que sejamos persuadidos, acima de qualquer dúvida, de que Deus é Seu Autor. Assim, a maior prova das Escrituras é derivada em geral do fato que Deus em pessoa é quem nela fala”.5

2) A Soberania de Deus: A Fé Reformada também é caracterizada pela insistência de que Deus deve ser conhecido e adorado como o Deus Soberano. Alguns fariam desta soberania a sua característica maior. Num certo sentido essa idéia estaria correta, especialmente quando a fé Reformada é comparada com outras tradições teológicas, onde a grandeza e a majestade de Deus são insuficientemente apreciadas ou mesmo perdidas de vista. Deus é Rei, e não o homem! Num mundo em que existe uma crise na doutrina da providência divina, como aponta o professor G.C. Berkouwer no seu brilhante volume sobre a providência de Deus, o Calvinista insiste que Deus é Senhor, e que Ele reina na História e sobre todo universo; que Ele é livre, independente de qualquer força ou ser fora dEle; que Ele conhece o fim desde o começo; que Ele cria, sustém, governa e direciona; que no dia do Senhor, o maravilhoso desígnio que Ele teve desde o começo será completamente manifestado – completo, e perfeito, afinal.6 Nada pode parar ou retardar o progresso da chamada dos seus eleitos, da edificação da sua igreja, da vinda do seu reino, no espaço – até o mais alto grau de extensão da vasta criação de Deus, ou no tempo – até o fim dos tempos.

Não temos a intenção de entender o mistério das transações de Deus com o mundo. Sempre, de novo, deixamos de encontrar uma explicação para o horror, o sofrimento e a morte que vemos ao nosso redor. Algumas coisas podem ser compreendidas como parte de um todo coerente. Mas existe muito que nós não sabemos e jamais poderemos vir a saber nesta vida e neste mundo. Os Cristão às vezes têm sido tentados até mesmo a duvidar, não só da Onipotência e Bondade de Deus, mas até da própria existência do Deus mesmo. James Walker na sua Teologia e Teólogos da Escócia  tem um parágrafo fascinante sobre as dúvidas religiosas de alguns dos grandes personagens da história da igreja Escocesa. Diz-se que Robert Bruce “uma das figuras mais dominantes na nossa história religiosa, sobre cujas palavras havia um certo poder de soberano que elas pareciam que vinham como se fossem diretamente do santuário”, costumava dizer, “É uma grande coisa crer em Deus”. E Samuel Rutherford, falando das dúvidas ateístas pelas quais bons homens são de vez em quando assaltados, comenta num parêntese condescendente, Expertus Loquor (ele fala de experiência própria). James Renwick, o último dos Covenanters (homens do Pacto) a ser condenado a morrer publicamente pela causa do Pacto, falando de suas lutas juvenis para chegar a uma fé firme e sem hesitação “descreve sua agonia imensurável naquela tempestade de alma que ameaçava engolir todas as suas convicções e esperanças mais doces. Estando nos campos e olhando para as montanhas, ele disse, ‘Se todas estas fossem fornalhas devoradoras de pedras ardentes, eu estaria contente de passar por elas, se por esse meio eu pudesse ter a certeza de que existe um Deus’”.

Procuramos nos relembrar, no entanto, das palavras sábias do grande teólogo Herman Bavinck que certa vez escreveu: “Mistério é o elemento vital da Teologia... A verdade que Deus revelou concernente a Ele mesmo na natureza e nas Escrituras vai muito além do que o homem pode conceber e da compreensão humana. Nesse sentido a Teologia se ocupa especificamente com mistério, pois não trata de criaturas finitas, mas do início ao fim se eleva acima de qualquer criatura ao próprio Ser Eterno e Infinito”.8 Apesar de não entendermos muitas coisas completamente, a despeito disso, louvamos e adoramos a Ele; nos ajoelhamos perante o Seu trono, de quem e por quem e para quem são todas as coisas. A Ele somente seja a glória para sempre [Rom 11:36]!

3) A Primazia da Graça de Deus: Outro distintivo principal da Fé Reformada é sua constante insistência sobre a invencibilidade da graça de Deus. Falamos muito das doutrinas da graça; e o fazemos com razão. Enquanto que existe no ensino das Escrituras bem mais do que os cinco pontos do Calvinismo – as doutrinas da eleição, redenção particular (expiação limitada), depravação total, graça irresistível, e a perseverança dos santos – ainda assim estas grandes verdades estão no cerne da nossa proclamação; e temos de anunciá-las sem vergonha e com grande entusiasmo. Com certeza, não pregamos sempre a eleição divina: fazê-lo seria pregar sem a perspectiva bíblica. O próprio João Calvino é muito mais cuidadoso do que muitos Calvinistas, neste sentido. Embora exalte a soberania de Deus em todos os sentidos, e a exalta, portanto, também com relação à salvação, somente quando ele começa a falar de salvação – da soteriologia –  é que ele, nas suas Institutas, faz uma discussão plena da doutrina da eleição.9 Este fato é de grande significância. A eleição sempre deve ser colocada no contexto bíblico; e isso é geralmente porém não exclusivamente, o contexto do desígnio redentor de Deus.

Certamente é também dentro deste contexto que nós devemos colocar a enorme importância da redenção particular, da expiação particular. Alguns fizeram comentários sem compreensão sobre esta doutrina e supõem ser este o tendão de Aquiles do Calvinismo.10 Mas esse não é o caso completo e fazer tal asserção se trata de ser passível de culpa de presunção e de elevada impertinência. A nossa doutrina da eficácia da obra expiatória de Cristo, é em primeiro lugar, uma das glórias e forças da Fé Reformada. Por que falamos da morte de Cristo do jeito que falamos? Por que é tão essencial que, com toda a vastidão das implicações da cruz, nós continuamente enfatizamos a sua particularidade? Por que insistimos que aqueles por quem nosso Senhor sofreu e morreu, são também aqueles que serão levantados e exaltados com Ele e se assentarão nos lugares celestiais, com Ele? Certamente a resposta só pode ser que o que está em jogo aqui é a invencibilidade da graça de Deus. O nome do nosso Senhor é Jesus, porque Ele salva o seu povo dos Seus pecados.

4) A Integração de Doutrina com a Vida Cristã: A Fé Reformada, igualmente, acentua a doutrina bíblica da vida cristã. Quantas têm sido as aberrações nesta área! Em alguns pontos da história a vida cristão foi entendida  em termos de ascetismo e do abandono da vida neste mundo presente. Os cristão até mesmo foram divididos em duas categorias: de um lado, aqueles chamados ao plano mais alto de isolamento monástico e auto-negação, expressando isso em votos de pobreza, castidade e obediência; do outro lado, aqueles que não eram capazes de atingir este padrão mas viviam no nível inferior e ordinário da experiência humana. Quase que o mesmo tipo de concepção também prevaleceu em certos meios mais evangélicos: por exemplo, onde crentes têm sido agrupados em duas categorias, aqueles da vida de fé vitoriosa, e aquele grupo dos não-vitoriosos, da vida carnal, que, apesar de cristãos, não eram da mesma qualidade ou caráter dos outros. Numa outra nuança deste mesmo esquema, existem cristãos que conhecem ao Senhor somente como Salvador; e existem cristãos que O conhecem tanto como salvador como Senhor. Às vezes tem havido também uma insistência sobre o caráter privado da verdadeira vida cristã. Toda a ênfase recaiu então sobre a vida da alma na presença de Deus, num tipo de experiência cristã mística que tinha a tendência de ignorar as outras relações da vida e tinha pouco a ver com a vida corporativa do Cristianismo. Alguém também pode levantar uma tendência marcante, aqui e ali, de se retrair da vida, como se o Cristão não pudesse viver no mundo, como se a vida no mundo fosse algo que o crente devesse evitar o mais que pudesse. Eu me refiro aqui, é claro, à mentalidade de gueto que tem caracterizado, com muita freqüência, as pessoas que se descrevem como cristãos bíblicos.

A Fé Reformada, com sua compreensão firme da doutrina do pacto da graça, tem insistido numa vida Cristã de grande amplitude e de órbita completa: uma vida vivida no mundo, mas ao mesmo tempo uma vida que não é orientada para o mundo e seus padrões; uma vida que enfatiza a “Cristianização” dos relacionamentos – por exemplo, o lar e a família. Onde é que alguém encontra a prática do culto doméstico? Onde é que alguém procura pelo conceito da igreja como uma coleção de famílias, ou como ela própria sendo a família? Além disso, a idéia Reformada da vida Cristã é a de uma vida vivida no mundo, cumprindo com as obrigações e as responsabilidades de tal vida, dando testemunho da fé que está em Jesus Cristo, no sentido de ser sempre coram Deo, na presença de Deus.11

5) A Relação entre Lei e Evangelho: A Fé Reformada também tem sido caracterizada por um entendimento claro da distinção e da relação entre Lei e Evangelho. Uma das diferenças que mais impressionam no Protestantismo histórico é encontrado neste ponto. Os Luteranos sempre acusaram os Calvinistas de confusos a esse respeito. Apesar de Lutero e Calvino, formalmente, terem um só pensamento no seu entendimento do uso triplo da Lei, ainda assim a ênfase de Lutero era no primeiro uso da Lei, enquanto que Calvino enfatizava o terceiro, o chamado “uso prático” (usus practicus).12 A Lei é nossa pedagoga de Cristo como o Novo Testamento claramente nos ensina; porém é mais do que isso; ela é também o nosso amado e santo guia para a vida de obediência e fé. Aqui a instrução do apóstolo Paulo é paradigmática para o Novo Testamento como um todo [Rom 8: 3,4]. A Lei não é o Evangelho: não é um meio de vida ou um meio para se viver. Mas nós também prosseguimos e declaramos que o Evangelho não o é sem a lei; ele é um meio de vida, o meio de vida para o povo de Deus. Se a santa Lei de Deus é de fato um reflexo da santidade do próprio Deus, então também o crente apesar de estar livre da Lei como um meio de vida, continua numa relação de alegre obediência à Lei que Deus, em Sua livre misericórdia, lhe deu. Além disso, faz parte do que nós entendemos que as escrituras ensinam, que a lei de Deus tem as suas implicações para a sociedade em geral, o usus politicus.

Aqui novamente está um aspecto da verdade que precisa ser diariamente pregado e a cada hora, em nossa presente situação social. Num tempo de impiedade disseminada, quando parece não existir mais nenhuma noção clara de princípios morais absolutos e normativos; quando o dia do Senhor é pisado e a vida humana é barata, facilmente abortada, e a razão de ser disso, justificada até mesmo pela suprema corte do país; quando Deus é zombado e seus preceitos desafiados, e existe perigo exatamente e precisamente nesta narrativa e neste registro de eventos de um abandono divino de toda a nossa ordem social, como conseqüência de nossa mesquinharia, desejos e impureza (Rom 1:18ff.); nesta situação, com certeza a igreja de Cristo precisa declarar com convicção óbvia e com vigor que, de Deus não se zomba e que Sua santa Lei não pode ser deixada de lado sem que haja punição.

6) O Relacionamento entre o Reino de Deus e o Mundo: Outra característica principal da Fé Reformada tem sido sua visão positiva e afirmativa daquilo que talvez eu possa chamar de relacionamento entre o reino de Deus e o mundo. Neste ponto as opiniões não têm sido uniformes, e nem todos os teólogos Reformados têm estado preparados para falar livre e facilmente da idéia do “mandato cultural”, como alguns outros o fazem. Não obstante, no seu melhor e mais alto ponto a tradição teológica reformada tem expressado um grande interesse na forma e cultura do mundo: não no sentido, é claro, de se conformar com o mundo, mas no sentido de transformação do mundo. Pode-se ver isso fortemente no próprio Calvino, cujos interesses eram bem mais amplos do que a proclamação do Evangelho em Genebra.13 Esta proclamação era de primeira importância, com certeza; mas tinha suas implicações ao longo do caminho, por toda a vida da comunidade e do estado.

A sociedade é importante? Existe essa coisa de um “mandato cultural”?14 Temos de nos importar com as condições sob as quais as pessoas vivem? Os famintos devem ser alimentados, os sedentos devem ser saciados, os perseguidos defendidos, e os necessitados satisfeitos? Só pode existir uma resposta da perspectiva Reformada. Com muita freqüência o pensamento nesta área foi insuficientemente ligado ao Evangelho; e muitas vezes idéias vindas de outras fontes que não o Evangelho têm permeado o que bons homens pensaram sobre a vida do crente aqui neste mundo.15 Mas cristãos reformados crêem enfaticamente que a “Ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam” (Salmo 24:1), e que Ele não abandonou nem por um momento os poderes fora dEle mesmo. É por isso que não podemos ser indiferentes aos males sociais, e à violações da lei de Deus na sociedade como um todo; é por isso que devemos nos opor ao terrível mal do aborto, à horrível aliciação da corrupção moral perceptível em todo canto, e também ao massacre opressor dos pobres e destituídos que estão sob os poderosos, à opressão dos fracos e desamparados qualquer que seja a forma como se manifeste. Certamente a transformação social não pode, em nenhum sentido, estar divorciada da pregação do Evangelho e da regeneração de indivíduos. Mas ao mesmo tempo é muito errado supormos que não deveríamos fazer nada, não dar testemunho, não exercer nenhuma influência, não ter visão, ver a nós mesmos como se não tivéssemos um chamado para trabalhar para que a vontade preceptiva de Deus seja feita, mesmo que um reavivamento e reforma mais abrangentes tardem a vir.

Trata-se de uma prostituição do conceito bíblico da vida da fé, de considerar o Cristão como uma pessoa isolada, vivendo para ele próprio somente, como se ele pudesse cumprir sua obrigação para com Deus sem ver todas as coisas como estando sujeitas ao Senhorio de Jesus Cristo. Não temos que ter medo de enfrentar o mundo, apesar do seu caráter ser mau e de jazer na impiedade (I João 5:19). Cristãos Reformados têm desafiado tiranos e destituído esses: podemos lembrar de Gaspar de Coligny, William de Nassau, o Príncipe d’Orange, John Knox, John Rym, Oliver Cromwell, Richard Cameron e os Covenanters Escoceses (homens do pacto), John Witherspoon e outros homens piedosos, santos, que tinham como meta glorificar a Deus sobre a terra. Esta é a nossa herança, nosso entendimento do que significa viver como Cristão neste mundo, viver a vida da fé. Não há razão para temer a escuridão, e a fúria dos déspotas não deve nos aterrorizar. E por que deveria, se Aquele a quem pertencemos nos disse: “Tende bom ânimo; Eu venci o mundo” (João 16: 33). Assim, como Cristãos nós trabalhamos rumo ao dia em que os reinos deste mundo se tornarão o reino do nosso Senhor e do Seu Cristo (Apoc.11:15).

7) A Importância da Pregação:  Por fim, a teologia Reformada é marcada também por uma visão muito clara de pregação. Talvez eu deveria ter dito: por uma visão definida e clara do ministério e da vida na igreja em relação a ele. Aqui, existe muito em comum entre todos os evangélicos, de qualquer período da história. Isso é claro, também é verdadeiro das outras áreas que eu mencionei. Por exemplo, João Calvino não inventou a doutrina da predestinação. Assim também com relação à pregação, na medida em que eles e nós somos bíblicos, evangélicos e calvinistas ocupam o mesmo campo e se regozijam na nossa comunhão. Continua sendo verdade, no entanto, que alguém pode falar de uma visão distintamente Reformada de pregação. Mas no que consiste isso?

Certamente aqueles que se apegam à fé Reformada têm uma visão elevada do ministério (veja Rom. 10:15).16 Já podemos sugerir e pressupor isso, apesar de não termos dúvidas que muitos nas chamadas igrejas Reformadas e Presbiterianas esqueceram sua própria herança a este respeito. A doutrina do ministério que prevalece em muitas frentes é uma visão muito inferior do que aquela ensinada nas Escrituras: testemunhe a facilidade com que as congregações se livram de pastores que possam tê-los incomodado de alguma forma ou desagradado pela objetividade da sua pregação.

Se temos uma visão elevada do ministério, isso quer dizer que temos também um visão elevada da própria pregação do evangelho em si (I Cor 1:21; Rom 10: 13-15). É pela pregação que Deus confronta as pessoas e as traz para si, conformando-as ao padrão do Seu Filho; de fato, é pela pregação que Jesus Cristo se apresenta aos corações e às consciências dos homens (Rom 10:14).

Mas nós prosseguimos e fazemos a pergunta básica: O que caracteriza a pregação no sentido neo-testamentário da palavra?

a)      Exposição: Certamente pregação é a exposição da Palavra de Deus. Quando estamos lidando com as Escrituras, procurando expô-las temos de lutar com a passagem que temos à nossa frente; temos de abordá-la exegeticamente; temos que procurar entender seu significado; temos que procurar entender seu significado específico. Outras áreas de estudo são de uma enorme valia aqui – a teologia sistemática, por exemplo; a história da igreja e teologia bíblica; um conhecimento integral da sua própria época e cultura dentre outros; porém nada deve interferir com o pregador e o seu texto.

b)      Aplicação: Pregação é inevitavelmente, e na natureza do caso, a aplicação da palavra de Deus. Alguns têm negado isso, ou pelo menos têm seriamente modificado esta visão. Até mesmo aqueles que se chamam Reformados têm, ocasionalmente sentido um certo desconforto com a conexão entre “exposição” e “aplicação”, já que a aplicação parece exigir que o pregador seja muito direto na abordagem do seu povo a ponto de esperar que o povo faça algo com a verdade que os confronta. Deve ser enfatizado que o decisivo resultado da pregação não é o resultado de nossa habilidade ou criatividade, paixão ou zelo, mas sim da obra de Deus por meio do Seu Espírito nos corações daqueles que ouvem. Ao mesmo tempo está perfeitamente claro nas Escrituras “que a verdade é para o bem; e a grande pedra angular da verdade é a sua tendência a produzir santidade”;17 e esta pregação é de longe muito mais do que anunciar: ela é exposição e aplicação; é a verdade levada à vida; é verdade com uma dimensão moral e cognitiva (2 Tim. 4:1,2).

Aplicar a verdade na pregação não é tarefa fácil; no entanto nós não teremos pregado enquanto assim  não tivermos feito. Os teólogos de Westminster, no seu pequeno e maravilhoso tratado sobre o assunto, insistiam que o pregador “não deve ficar só em doutrina geral, apesar de confirmar e esclarecer, mas deve levá-la à vida e ao uso especial dos seus ouvintes por meio da aplicação: o que, no entanto, se mostra um trabalho de grande dificuldade para a pessoa, e que requer muita prudência, zelo e meditação, e será muito desagradável para o homem natural e corrupto; no entanto ele deve tentar apresentá-la de tal forma, que os seus ouvintes sintam a palavra de Deus rápida e poderosamente, e como um discernidor dos pensamentos e propósitos do coração; e que, se qualquer pessoa ignorante ou descrente estiver presente ele possa ter os segredos do seu coração manifestos e dar glória a Deus”.18

c)      Proclamação: Mas não podemos parar por aí. Pois a pregação é a exposição e a aplicação da Palavra der Deus; mas, além disso ela é proclamação. A própria palavra “pregar” no Novo Testamento significa isso. Nós somos expositores e aplicadores; porém somos expositores e aplicadores da Verdade de tal forma que o que nós fazemos vem a ser proclamação. Nós somos arautos, com uma mensagem, que nos foi legada para ser entregue às pessoas. Isso nos tira para fora de nós mesmos, nos eleva, tirando-nos da esfera da comunicação ordinária. Nós estamos lidando com os assuntos supremos de vida e morte, do céu e do inferno. Não somos de nós mesmos; a mensagem que trazemos não é de nossa própria imaginação; o peso que é colocado sobre nós não está confinado às preocupações do tempo e do espaço. O pregador é o homem de Deus com a mensagem de Deus. E essa mensagem é da mais desesperada urgência e conseqüência. Somos enviados a pessoas que vivem no mundo das sombras da morte e temos as palavras de vida e luz nos lábios. Quando um ministro reformado prega, ele o faz com a consciência do que consiste a sua tarefa e qual a sua função. Ele deve se levantar e proclamar sua mensagem  com o coração cheio de amor a Cristo e pelas almas dos homens. Ele deve pregar clara e simplesmente, destemidamente, pastoralmente e amorosamente; e ele deve pregar na certeza e consciência da seriedade e majestade e da glória do que Deus está fazendo por meio dele. Ele sabe que o Senhor está consagrando a Si a boca e a língua de um mero homem a fim de ressoar por meio da própria pregação a voz do próprio Salvador. 19 O que nossa geração precisa não é de um grupo de comunicadores, ou de oradores muito espertos, oradores eficazes, ou professores interessantes, mas sim de um grupo de proclamadores do Evangelho que permanece para sempre em toda sua riqueza e compreensibilidade.

d)     Liberdade: Porém, uma qualidade a mais da pregação no entendimento Reformado da palavra deve ser mencionado: a sua liberdade. “Eu, irmãos, quando fui Ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não o fiz com ostentação de linguagem, ou de sabedoria. Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado. E foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu estive entre vós. A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder”, (I Cor.2:1-4). E de novo: “Portanto eu vos protesto, no dia de hoje, que estou limpo do sangue de todos; porque jamais deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus” (Atos 20: 26,27; e também 2 Co 5:10,11; 2 Tm 2:9). Dos primeiros pregadores do Evangelho, os apóstolos, nos é dito: “Tendo eles orado, tremeu o lugar onde estavam reunidos; todos ficaram cheios do Espírito Santo, e, com intrepidez, anunciavam a palavra de Deus” (Atos 4; 31).

            Calvino tem uma ótima palavra para usarmos aqui:

“De acordo, Pedro, que era bem instruído pelo Mestre em relação a quanto deveria fazer, não reserva nada para si mesmo ou para outros a não ser compartilhar a doutrina como ela foi lhe foi entregue por Deus. ‘Se alguém fala, fale de acordo com os oráculos de Deus’ (I Pedro 4:11); isto é, não hesitando ou tremendo como as consciências más estão acostumadas a fazer, mas sim com a mais alta confiança que é apropriada ao servo de Deus equipado com as suas ordens certas. O que seria isso senão rejeitar todas as invenções da mente  humana (de qualquer que seja a mente que tenham vindo) a fim de que a pura Palavra de Deus seja ensinada e apreendida na igreja do crente? O que é isso senão remover as ordenanças, ou antes as invenções de todos os homens (qualquer que seja a sua posição), a fim de que somente os decretos de Deus permaneçam fortes? Estas são aquelas ‘armas espirituais... poderosas em Deus para destruir fortalezas’; por meio delas os fiéis soldados de Deus ‘anulando sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, levando cativo todo pensamento `a obediência de Cristo’ (2Cor 10: 4-5). Aqui, então, está o poder soberano com o qual os pastores da igreja, qualquer que seja o nome que forem chamados, deveriam ser equipados. Isto é, que eles se atrevam, a ousadamente fazer todas as coisas pela Palavra de Deus; que eles possam, com força, fazer com que todo poder, glória, sabedoria e exaltação do mundo se renda e obedeça à sua majestade.; que eles sustentados pelo seu poder possam comandar do maior até o menor; possam edificar  a casa de Cristo e aniquilar a de Satanás; possam alimentar as ovelhas e espantar os lobos; possam instruir e ensinar aos que se deixam ensinar; possam acusar e repreender e subjugar os rebeldes e teimosos; possam ligar e desligar; e finalmente, se necessário for, possam lançar raios e trovões; no entanto, fazer tudo pela palavra de Deus”.20

É óbvio que deve haver alguma restrição na liberdade ministerial na pregação da Palavra de Deus. Um ministro deve ser um pregador responsável; e ele é livre para pregar apenas aquilo que está nas Escrituras. Como o próprio Calvino aponta, a diferença entre os apóstolos e os seus sucessores é que “os primeiros eram certamente escribas genuínos do Espírito Santo, e seus escritos devem portanto ser considerados oráculos de Deus; mas o único ofício dos outros (dos sucessores) é de  ensinar o que foi providenciado e selado nas sagradas Escrituras.’21 Além disso, um ministro é um dentre muitos; ele está sujeito aos seus irmãos no Senhor, como um servo da Palavra de Deus na comunhão da igreja.

É uma das glórias da forma bíblica de governo de igreja, no entanto, que na tradição Reformada os ministros devem ser preservados do falso ensino e doutrina herética assim como do discurso precipitado no exercício do seu ofício, na sua relação com o presbitério e a sua supervisão dos mesmos, mas ao mesmo tempo protegidos de qualquer desprazer malicioso nas suas congregações quando o ressentimento pode brotar pela sua proclamação fiel do Evangelho. O ministro na tradição Reformada é separado até certo grau da sua congregação no que ele não pode ser dispensado pelo caráter profético da sua pregação. De forma ordinária é claro que os pastores e o povo devem ser um só, e ambos deveriam se regozijar na amizade que compartilham e no apreço que têm um para com o outro. O pastor deveria estar preocupado em edificar; não em arruinar. Mas cada ministro digno do seu sal, teve a experiência de ter sido constrangido pela obediência à Palavra de Deus, a repreender e reprovar quando há pecado, erro, visão curta na congregação; ele o faz sem medo e sem favor; ele não é bajulador de homens. E ele o faz com um grande e potencial custo próprio. Ao mesmo tempo, igrejas e instituições que clamam para si o nome de cristãs, e existem para exaltar o nome de Cristo e levar avante a sua causa na terra, devem fazer todo esforço possível para que a função profética do ministério esteja sendo exercida com toda ousadia e liberdade. E deveriam agradecer a Deus por tal coisa.

Não precisamos de palavras açucaradas, pensamentos anuviados, pregadores que fazem concessões, cujo primeiro pensamento é se o que eles vão dizer vai ou não ofender aos ouvintes ou a comunidade como um todo; mas antes precisamos de pregadores cujo compromisso primordial e portanto o primeiro impulso, seja a obediência ao senhor Jesus em cujo serviço eles foram alistados, a quem eles pertencem, e a quem eles devem prestar contas.

Na sua luta com o Arcebispo John Whitgift, o primeiro no ranking Elizabetano que freqüentemente parecia estar mais interessado em agradar a rainha do que ao Senhor, e que resistiu até mesmo a perseguir aqueles na igreja que insistiam na aplicação livre da palavra de Deus, o grande teólogo Puritano e pregador Thomas Cartwright escreveu estas nobres palavras:

“É verdade que deveríamos ser obedientes aos magistrados civis que governam a igreja de Deus naquele ofício que a ele é confiado, e de acordo com aquele chamado. Mas deve-se lembrar que magistrados civis devem governá-la de acordo com as regras de Deus prescritas na sua Palavra, e naquilo que são cuidadores assim também sejam servos para a igreja, e no governo da igreja eles lembrem-se de se submeterem a igreja, submeter seus cetros, lançar ao chão suas coroas, perante a igreja, sim, como diz o profeta, lamber o pó dos pés da igreja. De maneira que não quero dizer que a igreja ou extraia à força os cetros das mãos dos príncipes, ou tire suas coroas das cabeças, ou que requeira que os príncipes lambam o pó dos pés dela (como o fez o Papa sob esta pretensão), mas quero dizer, como o quer dizer o profeta, que qualquer que seja a sua magnificência ou excelência ou pompa deles ou das suas propriedades e posses, que  não fecha com a simplicidade (no entender do mundo)  e pobreza e estado desprezível da igreja, que eles estarão contentes em  abrir mão”.22

Cartwright pagou um alto preço nos seus dias pela sua obediência ao Rei dos reis: ele foi silenciado, aprisionado e exilado para sua liberdade no exercício do seu ministério, enquanto que os bispos bajuladores prosperaram e afloraram com suas consciências mortas e sua preocupação em agradar sua Majestade. Talvez tenha de ser sempre assim. Mas seja assim ou não –  se a nós for dada a liberdade dentro da igreja , de ser fiel à palavra de Deus ou ter de batalhar continuamente por ela - não pode haver dúvida de onde está  nosso dever. E o fato é que a luta jamais acaba, enquanto a natureza humana permanecer do jeito que ela é, mesmo que em princípio esteja convertida e humilhada aos pés da cruz de Cristo. Um ministro na igreja de Jesus Cristo, reformada de acordo com a Palavra de Deus, jamais pode passivamente aceitar uma imposição de silêncio que venha a ser ilegalmente colocada sobre ele, mas ele dirá perante qualquer sinédrio que seja chamado a comparecer: “Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus; pois nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos” (Atos 4:19,20). E numa palavra dos apóstolos que diz tudo que precisa ser dito: “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5:29).


1 Fred H. Klooster, A Singularidade da Teologia Reformada: Uma Tentativa Preliminar de Descrição (Grand Rapids: O Sínodo Reformado Ecumênico, 1979). A brochura inclui respostas de Raden Soedarmo, Sr. Eugene Osterhaven, W. van’t Spijker, e John H. Leith.
2 A literatura é vasta e está crescendo. Veja por exemplo, Harold Lindsell, A Batalha pela Bíblia (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1976); e A Bíblia e o Equilíbrio (Zondervan, 1979); também as publicações do Conselho In ternacional de Inerrância Bbíblica (Oakland, Califórnia). Por outro lado, Jack B. Rogers, ed., Davis, O Debate Sobre a Bíblia (Philadelphia: Westminster Press, 1977); também Jack B. Rogers e Donald K. McKim, A Autoridade e a Interpretação da Bíblia: Uma Abordagem Histórica (San Francisco: Harper e Row, 1979).
3 A discussão de João Calvino sobre a autoridade bíblica é de extrema importância e é tão valiosa agora como foi no século 16; veja as suas Institutas da Religião Cristã, , I/ 7,8,9.
4 A Confissão de Fé de Westminster, I/6.
5 Institutas, I/7/4; sobre o testemunho do Espírito Santo veja também I/7/I; I/7/5;I/8/13.
6 G.C. Berkouwer, A Providência de Deus ( Grand Rapids:Wm. B. Eerdmans Pub Co., 1952), pp. 7ff.
8 Herman Bavinck, A Doutrina de Deus ( Banner of Truth Trust, 1977), p. 13.
9 Institutas, III/21-24.
10 Veja por exemplo Clark H. Pinnok, ed., Grace Unlimited (Graça Ilimitada) (Minneapolis:Bethany Fellowship, Inc., 1975): “Apesar de os ensaios não terem sido escritos de maneira polêmica, sua tese dá ao livro um caráter controverso, no que nós estaríamos opondo um esforço tremendo na ortodoxia Protestante limitando o evangelho e jogando uma sombra sobre a sua disponibilidade e intenção universais, manifestando-se mais abertamente no Calvinismo clássico. Esta teologia que, na sua doutrina terrível de dupla predestinação, questiona a intenção de Deus de salvar a todos os pecadores e como conseqüência lógica nega que Cristo morreu para salvar o mundo como um todo, é simplesmente inaceitável exegeticamente, teologicamente e moralmente, e devemos dizer a ela um ‘Não!’ enfático”. (p. 12; as palavras são de Pinnock).
11 Veja o excelente livro de M. Eugene Osterhaven  O Espírito da Tradição Reformada -The Spirit of The Reformed Tradition - (Grand Rapids: Wm.B. Eerdmans Pub. Co., 1971), especialmente o capítulo 4, “Na Presença de Deus”, pp.88ff.
12 Otto W. Heick, A History of Christian Thought, Vol. I ( Philadelfia: Fortress Press, 1965), p. 450.
13 Um estudo de grande ajuda sobre os aspectos mais amplos do ministério de Calvino nesse respeito é W.Fred Graham, The Constructive Revolutionary: John Calvin & His Socio-Economic Impact (Richmond: John Knox Press, 1971).
14 Em qualquer discussão sobre o “mandato cultural”, a passagem fundamental a que invariavelmente se faz referência é Gênesis 1:28, “E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, e sobre todo animal que rasteja pela terra”. Está em vista a responsabilidade de sujeitar todas as áreas da vida, cada aspecto da experiência ao senhorio de Deus e de  considerar cada uma dessas áreas para o Seu serviço.
15 Temos de reconhecer que na natureza do caso até mesmo o melhor e mais puro dos cristãos é imperfeito; e apesar de todos os nossos esforços de nos livrarmos daquelas coisas que não têm origem na Palavra de Deus, aquelas idéias e tradições que são parte da bagagem que trazemos conosco de outra esfera, resta aquilo que é inconsistente com o Evangelho. Assim, os próprios Reformadores por exemplo, aceitaram o sacramentalismo e o territorialismo do seu tempo de maneira inquestionável, apesar de estes terem sua gênese nos reinados dos imperadores Romanos do quarto século, e não no Novo testamento. Muitos líderes cristãos no século dezesseis tendiam a pensar nos limites da igreja e do estado como quase co-extensivas. O fato de eles estarem enganados neste ponto não anula o que eles procuraram fazer em termos de reino de Deus.
16 Veja, por exemplo João Calvino, Institutas, IV/ 3/3; e IV/3/I,2.
17 Citação da “Introdução” a A Forma de Governo, da forma ratificada e adotada pela Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América, 1788.
18 O Diretório do Culto Público, “Da Pregação da Palavra”, encontrado na Confissão de Fé, Catecismo Maior e Menor, etc., editado pelo Comitê de Publicações da Igreja Presbiteriana Livre da Escócia (1967),p. 380. E Pela Editora Os Puritanos/2000
19 Romanos 10:14 é de primeira importância aqui. Paulo declara: “Como porém invocarão aquele em que não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?”. O apóstolo está declarando aqui que na pregação não é simplesmente a voz do pregador que é ouvida, mas sim a própria voz do Senhor Jesus Cristo. Nas suas discussões de pregação, esta idéia é muito proeminente na mente de Calvino.
20 Institutas, IV/8/9.
21 Ibid.
22 As Obras de John Whitgift, editado para a Parker Society por John Ayre, Vol III ( Cambridge: The University Press, 1853), p. 189. As palavras de Cartwright estão impressas ao longo das respostas de Whitgift.

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