Dr. John Richard
de Witt
Introdução – Definindo a Questão
Uma das grandes questões que nós temos que encarar
constantemente, como cristãos evangélicos de convicções reformadas, é a questão
da identidade. O Assunto apresentado através daquela pergunta reiterada com
freqüência : O que é que significa ser reformado? E ainda mais precisamente: O
que significa ser reformado não apenas no sentido histórico da palavra, mas no
contexto atual, na situação em que nos encontramos na igreja, na nação e no
mundo?
Temos a intenção, é claro, de ser fiéis à nossa
herança, à grande tradição na qual nós nos encontramos e que deu expressão tão
brilhante e convincente às verdades da Palavra de Deus, afirmadas pela igreja
Cristã antiga e, num certo sentido, redescobertas na época da Reforma
protestante. Mas esta nossa intenção, de nos atermos ao que é bom, requer mais
do que uma afirmação de determinação. Ela também demanda definição
contemporânea e claramente clama por um delineamento que fará, para nosso
próprio tempo, o que outros fizeram em gerações anteriores. Sempre temos de nos
relembrar, a nós mesmos, que não fazemos teologia num vácuo; que a ciência da
teologia não começou com a nossa entrada no mundo. Às vezes tem-se a impressão,
pela forma como alguns pregam e escrevem, que toda a cristandade esperava pelo
advento dos seus ministérios, e que é somente por meio deles, e pelo que têm a
dizer, que a fé cristã começou a fazer sentido e a ser entendida em todas as
suas implicações. Mas tal abordagem é totalmente inaceitável; aqueles que falam
dessa maneira introduzem, ao mesmo tempo, seus próprios absurdos como se eles
fossem o próprio evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Devem, assim, ser repreendidos
e seu ensino deve ser repudiado.
Deveríamos dizer de uma vez por todas que, mesmo a
partir de uma perspectiva histórica, não é fácil chegar a uma definição breve e
satisfatória do que significa ser Reformado. Essa é sem dúvida a questão; isso
por uma série de razões.
Existem
Fontes de Autoridade?
Em primeiro lugar porque não existe uma única fonte
à qual poderíamos recorrer em busca de uma expressão que defina com autoridade
a fé Reformada. Certamente devemos muito a João Calvino. Mas também devemos
grandemente a muitos outros: a Agostinho por exemplo, bem como a Anselmo, e a
Martinho Lutero. Além do mais, esses homens, não importa quão grandes possam
ter sido, eles não tinham a pretensão de estar falando com uma autoridade
equivalente à autoridade da revelação divina, ou de forma tal que toda a igreja
fosse constrangida a lhes obedecer. No Cristianismo evangélico não existe papa
que pode falar ex catedra, e assim
impor pronunciamentos infalíveis aos fiéis. Freqüentemente digo aos meus alunos
que, se é para aprender qual foi a posição Reformada nesse ou naquele ponto de
doutrina – se for para adquirirmos qualquer coisa como um entendimento oficial
da fé Reformada – temos que olhar não
para os escritos dos teólogos, mas sim para as confissões das igrejas: a
confissão Belga, o catecismo de Heidelberg, a Segunda Confissão Helvética, os
Cânones de Dort, a Confissão de Fé de Westminster e seus respectivos catecismos.
Assim chegamos mais próximo de um consensus
ecclesiae, um consenso da igreja, nesses momentos específicos da história,
com relação ao ensino da palavra de Deus.
Diferenças de
Opiniões sobre as Definições:
Também é verdade que ser Reformado quer dizer coisas
diferentes para pessoas diferentes. Alguns tendem a identificar a fé Reformada
com os cinco pontos do calvinismo, esquecendo que aqueles cinco pontos são
apenas uma expressão da fé –constituindo-se uma expressão importante – contra
um erro que se infiltrou no começo do século dezessete. Os Cânones de Dort
continuam sendo de extremo valor; e eu particularmente acho inconcebível que
qualquer pessoa possa afirmar ser reformado se os repudiar. Acima de qualquer
disputa no entanto, a Fé Reformada é muito mais abrangente e de alcance muito
mais amplo do que aqueles cinco pontos. É muito injusto àquela fé quando alguém
restringe seu conteúdo a uma única área de doutrina, por mais essencial que
seja.
É possível
Identificar Características da Fé Reformada?
Isso nos leva a considerar, até que ponto pode ser
possível isolar e identificar certos temas característicos da fé Reformada?
Como poderemos tentar descrever a genialidade
desta fé? O que pode ser identificado no Calvinismo que seja distinto e
qual a melhor definição que pode aproximar-se do seu conceito completo?
Muitas respostas a essas perguntas foram dadas,
nenhuma delas totalmente satisfatória. No entanto não devemos perder a
esperança. Sugiro que nós aqui não devemos pensar meramente num único tema dominante,
mas sim numa série de temas que se relacionam uns com os outros e que contribuem,
cada um na sua própria forma, para uma compreensão maravilhosamente harmônica e
eminentemente bíblica da fé Cristã.
Esses temas não são isolados uns dos outros; mas se encaixam uns nos outros;
eles são os fios verticais e horizontais que se entrelaçam formando o tecido da
nossa posição teológica e espiritual. Eles não devem ser entendidos de maneira
desconexa, sem relação, mas devem antes ser tomados como um conjunto.
Mencionarei vários deles agora; admito
porem que os temas que incluo não excluem outros e que a minha tentativa de
discutir aquilo que constitui a genialidade da fé Reformada é uma discussão
preliminar e provisória.
Os Temas
Dominantes da Fé Reformada.
1) A Doutrina das Escrituras:
Em primeiro lugar, extremamente básica para a fé Reformada é a sua doutrina das
Escrituras. De fato, num ensaio recente em que procura definir o tema em que a
fé Reformada encontra sua singularidade, o Professor Fred H. Klooster sugere
que pode se dizer ser a doutrina da Escritura '‘toda e por inteiro'’ (sola e tota Scriptura).1 Num certo sentido Doutor
Klooster está certo segundo qualquer padrão. A Reforma redescobriu e acentuou
de novo e autoridade da Bíblia. Ela derrubou a tirania de uma hierarquia
eclesiástica corrupta que se tinha colocado acima da Palavra de Deus. A Reforma
e repudiou a autoridade da tradição eclesiástica coordenada com aquela palavra,
insistindo, com um vigor proveniente de uma recém descoberta verdade, de que
Jesus é Mestre em Sua própria casa; que Ele fala ao Seu povo através da Sua
Palavra; e que esta “palavra é o meio pelo qual Ele chama pecadores para Si,
reinando e subordinando-os ao Seu senhorio”.
Atualmente um amplo debate está se alastrando sobre
a questão da inspiração e sobre um assunto correlato: a inerrância das
Escrituras. Verifica-se um endurecimento notável das linhas em todas as
frentes: alguns considerando heréticos aqueles que não concordam com sua
própria abordagem da posição, apesar deles poderem ser Cristãos evangélicos e
de viverem em harmonia com as principais doutrinas da fé; outros, declarando
que são obscurantistas e anti-intelectuais aqueles que querem insistir no
caráter divino da palavra deDeus.2
Não
sabemos, com detalhe, como foi que Deus deu a Sua Palavra. Na verdade, sabemos
que Ele deu partes da Bíblia de maneira diferente de outras partes: os dez
mandamentos por exemplo, foram escritos pelo dedo do próprio Deus, enquanto que
os Evangelhos foram escritos por meio de lembranças inspiradas, o uso de
testemunhas, e – no caso de Lucas nos é dito especificamente – investigação
histórica, e tudo isso, além de sua forma peculiar, com um propósito teológico
muito definido em mente. Também é perfeitamente aparente que a humanidade e a
individualidade dos escritores das Escrituras foram totalmente reconhecidas e
levadas em consideração pelo Espírito Santo no processo de inspiração. Como
resultado disso, vemos que Amós e Isaías escreveram livros muito diferentes,
com estilos muito diferentes, mostrando origens muito diferentes; Paulo e João,
semelhantemente, demonstram qualidades marcantes de suas próprias mentes e
corações, dando expressão a diferentes aspectos da verdade, escrevendo em
estilos incrivelmente diferentes,
demonstrando igualmente experiências e
intelectos afiados e exaltados, no entanto totalmente distintos. Tudo isso não
deveria causar inquietação alguma. Pelo
contrário, deveria causar maior adoração e louvor a Deus, de nossa parte; a
Deus que, por meio da superintendência soberana do Seu Espírito, nos deu a Sua
Palavra de tal forma que Isaías continuou sendo Isaías em tudo que escreveu, e
Paulo continuou sendo Paulo, enquanto que o resultado é a santa e infalível
Palavra de Deus.
Na tradição Reformada no entanto, em sua melhor e
mais elevada forma, a ênfase não caiu na maneira de inspiração, ou numa
definição técnica do significado dos vários atributos da Escritura tomados por
eles mesmos (sua perfeição, clareza, suficiência e necessidade), mas na sua
autoridade. É quando abordamos as Escrituras desta perspectiva, eu creio, que somos
capazes de compreender o significado dos vários adjetivos que usamos para descrever
a Bíblia. A Bíblia é autoritativa: e muito mais do que isso, ela é
absolutamente, e em última instância, autoritativa. Ela não erra e não pode
errar, e nunca jamais nos desviará. Podemos repousar no seu ensino, confiar
nela completamente, depender dela para tudo que precisamos saber para viver e
morrer de maneira feliz.3 “Todo o conselho de Deus
concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação,
fé e vida do homem”, afirma a Confissão de Fé de Westminster, “ou é expressamente
declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À
Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do
Espírito, nem por tradições dos homens”. 4 Quando as Escrituras falam, então, nós obedecemos. Quando ela afirma a
verdade, nós submetemos nossos corações e nossas mentes a ela com alegria e com
regozijo.
Mas com base em quê? Qual é a base para a nossa
aceitação da autoridade das Escrituras? Como é que sabemos o que afirmamos ser
verdade? Estas questões não são novas, e continuamos a lutar com elas. Estamos
persuadidos da autoridade das Escrituras porque podemos desvendar todos os seus
segredos, resolver toda dificuldade, e harmonizar cada aparente discrepância?
Porque com nossas próprias mentes somos capazes de desvendar e penetrar seus
mistérios? Aqui, Calvino – o teólogo do Espírito Santo – é de ajuda inestimável para nós, e dando
seqüência a Calvino temos a Confissão de Fé de Westminster. Nós sustentamos que
a Bíblia é um livro singular: vemos a sua singularidade e somos por ela afetados.
Sua unidade extraordinária, apesar de ter sido escrita ao longo de vários
séculos, seu estilo majestoso, seu conteúdo glorioso, sua consistência
maravilhosa, seu registro marcante de profecia e do seu cumprimento – todas estas
coisas nos movem a uma piedosa exclamação. Mas não se trata de nenhuma dessas
coisas, nem todas elas tomadas juntas, sendo citadas, que nos convencem, nos
persuadem e nos movem a obedecê-la. Antes, a base de autoridade indispensável,
bíblica e singularmente convincente, é , como Calvino jamais se cansou em
insistir, o testemunho do Espírito Santo. Nós cremos na Bíblia porque ela
é a Palavra de Deus: mas nós sabemos que
é a Palavra de Deus por causa do testemunho do Espírito Santo. Quando falhamos
em compreender isso, quando nós separamos a autoridade das Escrituras do
testemunho do Espírito – estamos ao mesmo tempo em perigo de esfriamento
espiritual e somos presas fáceis de debates estéreis que são improdutivos e, no
final, insensatos.
Na tradição Reformada, portanto, nossa doutrina, e
também nosso sistema organizacional, nosso louvor, nossa vida pública e privada
como cristãos, bem como aqueles que fazem parte da igreja, estão sob a
autoridade suprema da voz do Deus vivo falando a nós nas Escrituras. Pois para
nós a Bíblia não é simplesmente um livro, mas trata-se do livro de Deus: não é
apenas uma coletânea de proposições, mas tratam-se das palavras do Senhor
Vivente. “Credibilidade de Doutrina”, disse Calvino, “não é estabelecida até
que sejamos persuadidos, acima de qualquer dúvida, de que Deus é Seu Autor.
Assim, a maior prova das Escrituras é derivada em geral do fato que Deus em
pessoa é quem nela fala”.5
2) A Soberania de Deus: A Fé
Reformada também é caracterizada pela insistência de que Deus deve ser
conhecido e adorado como o Deus Soberano. Alguns fariam desta soberania a sua
característica maior. Num certo sentido essa idéia estaria correta,
especialmente quando a fé Reformada é comparada com outras tradições
teológicas, onde a grandeza e a majestade de Deus são insuficientemente
apreciadas ou mesmo perdidas de vista. Deus é Rei, e não o homem! Num mundo em
que existe uma crise na doutrina da providência divina, como aponta o professor
G.C. Berkouwer no seu brilhante volume sobre a providência de Deus, o
Calvinista insiste que Deus é Senhor, e que Ele reina na História e sobre todo
universo; que Ele é livre, independente de qualquer força ou ser fora dEle; que
Ele conhece o fim desde o começo; que Ele cria, sustém, governa e direciona;
que no dia do Senhor, o maravilhoso desígnio que Ele teve desde o começo será
completamente manifestado – completo, e perfeito, afinal.6 Nada pode parar ou retardar o progresso da chamada
dos seus eleitos, da edificação da sua igreja, da vinda do seu reino, no espaço
– até o mais alto grau de extensão da vasta criação de Deus, ou no tempo – até
o fim dos tempos.
Não temos a intenção de entender o mistério das
transações de Deus com o mundo. Sempre, de novo, deixamos de encontrar uma
explicação para o horror, o sofrimento e a morte que vemos ao nosso redor.
Algumas coisas podem ser compreendidas como parte de um todo coerente. Mas
existe muito que nós não sabemos e jamais poderemos vir a saber nesta vida e
neste mundo. Os Cristão às vezes têm sido tentados até mesmo a duvidar, não só
da Onipotência e Bondade de Deus, mas até da própria existência do Deus mesmo.
James Walker na sua Teologia e Teólogos
da Escócia tem um parágrafo
fascinante sobre as dúvidas religiosas de alguns dos grandes personagens da
história da igreja Escocesa. Diz-se que Robert Bruce “uma das figuras mais
dominantes na nossa história religiosa, sobre cujas palavras havia um certo
poder de soberano que elas pareciam que vinham como se fossem diretamente do
santuário”, costumava dizer, “É uma grande coisa crer em Deus”. E Samuel
Rutherford, falando das dúvidas ateístas pelas quais bons homens são de vez em
quando assaltados, comenta num parêntese condescendente, Expertus Loquor (ele fala de experiência própria). James Renwick, o
último dos Covenanters (homens do
Pacto) a ser condenado a morrer publicamente pela causa do Pacto, falando de
suas lutas juvenis para chegar a uma fé firme e sem hesitação “descreve sua
agonia imensurável naquela tempestade de alma que ameaçava engolir todas as
suas convicções e esperanças mais doces. Estando nos campos e olhando para as
montanhas, ele disse, ‘Se todas estas fossem fornalhas devoradoras de pedras
ardentes, eu estaria contente de passar por elas, se por esse meio eu pudesse
ter a certeza de que existe um Deus’”.
Procuramos nos relembrar, no entanto, das palavras
sábias do grande teólogo Herman Bavinck que certa vez escreveu: “Mistério é o
elemento vital da Teologia... A verdade que Deus revelou concernente a Ele
mesmo na natureza e nas Escrituras vai muito além do que o homem pode conceber
e da compreensão humana. Nesse sentido a Teologia se ocupa especificamente com
mistério, pois não trata de criaturas finitas, mas do início ao fim se eleva
acima de qualquer criatura ao próprio Ser Eterno e Infinito”.8 Apesar de não entendermos muitas coisas
completamente, a despeito disso, louvamos e adoramos a Ele; nos ajoelhamos
perante o Seu trono, de quem e por quem e para quem são todas as coisas. A Ele
somente seja a glória para sempre [Rom 11:36]!
3) A Primazia da Graça de
Deus: Outro distintivo principal da Fé Reformada é sua constante insistência
sobre a invencibilidade da graça de Deus. Falamos muito das doutrinas da graça;
e o fazemos com razão. Enquanto que existe no ensino das Escrituras bem mais do
que os cinco pontos do Calvinismo – as doutrinas da eleição, redenção
particular (expiação limitada), depravação total, graça irresistível, e a
perseverança dos santos – ainda assim estas grandes verdades estão no cerne da
nossa proclamação; e temos de anunciá-las sem vergonha e com grande entusiasmo.
Com certeza, não pregamos sempre a eleição divina: fazê-lo seria pregar sem a
perspectiva bíblica. O próprio João Calvino é muito mais cuidadoso do que
muitos Calvinistas, neste sentido. Embora exalte a soberania de Deus em todos
os sentidos, e a exalta, portanto, também com relação à salvação, somente
quando ele começa a falar de salvação – da soteriologia – é que ele, nas suas Institutas, faz uma discussão
plena da doutrina da eleição.9 Este fato é de grande
significância. A eleição sempre deve ser colocada no contexto bíblico; e isso é
geralmente porém não exclusivamente, o contexto do desígnio redentor de Deus.
Certamente é também dentro deste contexto que nós
devemos colocar a enorme importância da redenção particular, da expiação
particular. Alguns fizeram comentários sem compreensão sobre esta doutrina e
supõem ser este o tendão de Aquiles do Calvinismo.10 Mas esse não é o caso
completo e fazer tal asserção se trata de ser passível de culpa de presunção e
de elevada impertinência. A nossa doutrina da eficácia da obra expiatória de
Cristo, é em primeiro lugar, uma das glórias e forças da Fé Reformada. Por que
falamos da morte de Cristo do jeito que falamos? Por que é tão essencial que,
com toda a vastidão das implicações da cruz, nós continuamente enfatizamos a
sua particularidade? Por que insistimos que aqueles por quem nosso Senhor
sofreu e morreu, são também aqueles que serão levantados e exaltados com Ele e
se assentarão nos lugares celestiais, com Ele? Certamente a resposta só pode
ser que o que está em jogo aqui é a invencibilidade da graça de Deus. O nome do
nosso Senhor é Jesus, porque Ele salva o seu povo dos Seus pecados.
4) A Integração de Doutrina
com a Vida Cristã: A Fé Reformada, igualmente, acentua a doutrina bíblica da
vida cristã. Quantas têm sido as aberrações nesta área! Em alguns pontos da
história a vida cristão foi entendida em
termos de ascetismo e do abandono da vida neste mundo presente. Os cristão até
mesmo foram divididos em duas categorias: de um lado, aqueles chamados ao plano
mais alto de isolamento monástico e auto-negação, expressando isso em votos de
pobreza, castidade e obediência; do outro lado, aqueles que não eram capazes de
atingir este padrão mas viviam no nível inferior e ordinário da experiência
humana. Quase que o mesmo tipo de concepção também prevaleceu em certos meios
mais evangélicos: por exemplo, onde crentes têm sido agrupados em duas
categorias, aqueles da vida de fé vitoriosa, e aquele grupo dos não-vitoriosos,
da vida carnal, que, apesar de cristãos, não eram da mesma qualidade ou caráter
dos outros. Numa outra nuança deste mesmo esquema, existem cristãos que
conhecem ao Senhor somente como Salvador; e existem cristãos que O conhecem
tanto como salvador como Senhor. Às vezes tem havido também uma insistência
sobre o caráter privado da verdadeira vida cristã. Toda a ênfase recaiu então
sobre a vida da alma na presença de Deus, num tipo de experiência cristã
mística que tinha a tendência de ignorar as outras relações da vida e tinha
pouco a ver com a vida corporativa do Cristianismo. Alguém também pode levantar
uma tendência marcante, aqui e ali, de se retrair da vida, como se o Cristão
não pudesse viver no mundo, como se a vida no mundo fosse algo que o crente
devesse evitar o mais que pudesse. Eu me refiro aqui, é claro, à mentalidade de
gueto que tem caracterizado, com muita freqüência, as pessoas que se descrevem
como cristãos bíblicos.
A Fé Reformada, com sua compreensão firme da
doutrina do pacto da graça, tem insistido numa vida Cristã de grande amplitude
e de órbita completa: uma vida vivida no mundo, mas ao mesmo tempo uma vida que
não é orientada para o mundo e seus padrões; uma vida que enfatiza a “Cristianização”
dos relacionamentos – por exemplo, o lar e a família. Onde é que alguém
encontra a prática do culto doméstico? Onde é que alguém procura pelo conceito
da igreja como uma coleção de famílias, ou como ela própria sendo a família?
Além disso, a idéia Reformada da vida Cristã é a de uma vida vivida no mundo, cumprindo
com as obrigações e as responsabilidades de tal vida, dando testemunho da fé
que está em Jesus Cristo, no sentido de ser sempre coram Deo, na presença de Deus.11
5) A Relação entre Lei e
Evangelho: A Fé Reformada também tem sido caracterizada por um entendimento
claro da distinção e da relação entre Lei e Evangelho. Uma das diferenças que
mais impressionam no Protestantismo histórico é encontrado neste ponto. Os Luteranos
sempre acusaram os Calvinistas de confusos a esse respeito. Apesar de Lutero e
Calvino, formalmente, terem um só pensamento no seu entendimento do uso triplo
da Lei, ainda assim a ênfase de Lutero era no primeiro uso da Lei, enquanto que
Calvino enfatizava o terceiro, o chamado “uso prático” (usus practicus).12 A Lei é nossa pedagoga de
Cristo como o Novo Testamento claramente nos ensina; porém é mais do que isso;
ela é também o nosso amado e santo guia para a vida de obediência e fé. Aqui a
instrução do apóstolo Paulo é paradigmática para o Novo Testamento como um todo
[Rom 8: 3,4]. A Lei não é o
Evangelho: não é um meio de vida ou um meio para se viver. Mas nós também
prosseguimos e declaramos que o Evangelho não o é sem a lei; ele é um meio de
vida, o meio de vida para o povo de
Deus. Se a santa Lei de Deus é de fato um reflexo da santidade do próprio Deus,
então também o crente apesar de estar livre da Lei como um meio de vida,
continua numa relação de alegre obediência à Lei que Deus, em Sua livre
misericórdia, lhe deu. Além disso, faz parte do que nós entendemos que as
escrituras ensinam, que a lei de Deus tem as suas implicações para a sociedade
em geral, o usus politicus.
Aqui novamente está um aspecto da verdade que
precisa ser diariamente pregado e a cada hora, em nossa presente situação
social. Num tempo de impiedade disseminada, quando parece não existir mais
nenhuma noção clara de princípios morais absolutos e normativos; quando o dia
do Senhor é pisado e a vida humana é barata, facilmente abortada, e a razão de
ser disso, justificada até mesmo pela suprema corte do país; quando Deus é
zombado e seus preceitos desafiados, e existe perigo exatamente e precisamente
nesta narrativa e neste registro de eventos de um abandono divino de toda a
nossa ordem social, como conseqüência de nossa mesquinharia, desejos e impureza
(Rom 1:18ff.); nesta situação, com
certeza a igreja de Cristo precisa declarar com convicção óbvia e com vigor
que, de Deus não se zomba e que Sua santa Lei não pode ser deixada de lado sem
que haja punição.
6) O Relacionamento entre o
Reino de Deus e o Mundo: Outra característica principal da Fé Reformada tem
sido sua visão positiva e afirmativa daquilo que talvez eu possa chamar de
relacionamento entre o reino de Deus e o mundo. Neste ponto as opiniões não têm
sido uniformes, e nem todos os teólogos Reformados têm estado preparados para
falar livre e facilmente da idéia do “mandato cultural”, como alguns outros o
fazem. Não obstante, no seu melhor e mais alto ponto a tradição teológica
reformada tem expressado um grande interesse na forma e cultura do mundo: não
no sentido, é claro, de se conformar com o mundo, mas no sentido de
transformação do mundo. Pode-se ver isso fortemente no próprio Calvino, cujos
interesses eram bem mais amplos do que a proclamação do Evangelho em Genebra.13 Esta proclamação era de primeira importância, com
certeza; mas tinha suas implicações ao longo do caminho, por toda a vida da
comunidade e do estado.
A sociedade é importante? Existe essa coisa de um
“mandato cultural”?14 Temos de nos importar com
as condições sob as quais as pessoas vivem? Os famintos devem ser alimentados,
os sedentos devem ser saciados, os perseguidos defendidos, e os necessitados
satisfeitos? Só pode existir uma resposta da perspectiva Reformada. Com muita
freqüência o pensamento nesta área foi insuficientemente ligado ao Evangelho; e
muitas vezes idéias vindas de outras fontes que não o Evangelho têm permeado o
que bons homens pensaram sobre a vida do crente aqui neste mundo.15 Mas cristãos reformados crêem enfaticamente que a “Ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela
se contém, o mundo e os que nele habitam” (Salmo 24:1), e que Ele não
abandonou nem por um momento os poderes fora dEle mesmo. É por isso que não
podemos ser indiferentes aos males sociais, e à violações da lei de Deus na
sociedade como um todo; é por isso que devemos nos opor ao terrível mal do
aborto, à horrível aliciação da corrupção moral perceptível em todo canto, e
também ao massacre opressor dos pobres e destituídos que estão sob os
poderosos, à opressão dos fracos e desamparados qualquer que seja a forma como
se manifeste. Certamente a transformação social não pode, em nenhum sentido,
estar divorciada da pregação do Evangelho e da regeneração de indivíduos. Mas
ao mesmo tempo é muito errado supormos que não deveríamos fazer nada, não dar testemunho,
não exercer nenhuma influência, não ter visão, ver a nós mesmos como se não
tivéssemos um chamado para trabalhar para que a vontade preceptiva de Deus seja
feita, mesmo que um reavivamento e reforma mais abrangentes tardem a vir.
Trata-se de uma prostituição do conceito bíblico da
vida da fé, de considerar o Cristão como uma pessoa isolada, vivendo para ele
próprio somente, como se ele pudesse cumprir sua obrigação para com Deus sem
ver todas as coisas como estando sujeitas ao Senhorio de Jesus Cristo. Não
temos que ter medo de enfrentar o mundo, apesar do seu caráter ser mau e de
jazer na impiedade (I João 5:19). Cristãos Reformados têm desafiado tiranos e
destituído esses: podemos lembrar de Gaspar de Coligny, William de Nassau, o
Príncipe d’Orange, John Knox, John Rym, Oliver Cromwell, Richard Cameron e os
Covenanters Escoceses (homens do pacto), John Witherspoon e outros homens
piedosos, santos, que tinham como meta glorificar a Deus sobre a terra. Esta é
a nossa herança, nosso entendimento do que significa viver como Cristão neste
mundo, viver a vida da fé. Não há razão para temer a escuridão, e a fúria dos
déspotas não deve nos aterrorizar. E por que deveria, se Aquele a quem
pertencemos nos disse: “Tende bom ânimo; Eu venci o mundo” (João 16: 33).
Assim, como Cristãos nós trabalhamos rumo ao dia em que os reinos deste mundo
se tornarão o reino do nosso Senhor e do Seu Cristo (Apoc.11:15).
7) A
Importância da Pregação: Por fim, a teologia Reformada é
marcada também por uma visão muito clara de pregação. Talvez eu deveria ter
dito: por uma visão definida e clara do ministério e da vida na igreja em
relação a ele. Aqui, existe muito em comum entre todos os evangélicos, de
qualquer período da história. Isso é claro, também é verdadeiro das outras
áreas que eu mencionei. Por exemplo, João Calvino não inventou a doutrina da
predestinação. Assim também com relação à pregação, na medida em que eles e nós
somos bíblicos, evangélicos e calvinistas ocupam o mesmo campo e se regozijam
na nossa comunhão. Continua sendo verdade, no entanto, que alguém pode falar de
uma visão distintamente Reformada de pregação. Mas no que consiste isso?
Certamente aqueles que se apegam à fé Reformada têm
uma visão elevada do ministério (veja Rom.
10:15).16 Já podemos sugerir e pressupor isso, apesar
de não termos dúvidas que muitos nas chamadas igrejas Reformadas e
Presbiterianas esqueceram sua própria herança a este respeito. A doutrina do
ministério que prevalece em muitas frentes é uma visão muito inferior do que
aquela ensinada nas Escrituras: testemunhe a facilidade com que as congregações
se livram de pastores que possam tê-los incomodado de alguma forma ou desagradado
pela objetividade da sua pregação.
Se temos uma visão elevada do ministério, isso quer
dizer que temos também um visão elevada da própria pregação do evangelho em si
(I Cor 1:21; Rom 10: 13-15). É pela pregação que Deus confronta as pessoas e as
traz para si, conformando-as ao padrão do Seu Filho; de fato, é pela pregação
que Jesus Cristo se apresenta aos corações e às consciências dos homens (Rom 10:14).
Mas nós prosseguimos e fazemos a pergunta básica: O
que caracteriza a pregação no sentido neo-testamentário da palavra?
a) Exposição: Certamente
pregação é a exposição da Palavra de Deus. Quando estamos lidando com as
Escrituras, procurando expô-las temos de lutar com a passagem que temos à nossa
frente; temos de abordá-la exegeticamente; temos que procurar entender seu
significado; temos que procurar entender seu significado específico. Outras
áreas de estudo são de uma enorme valia aqui – a teologia sistemática, por
exemplo; a história da igreja e teologia bíblica; um conhecimento integral da
sua própria época e cultura dentre outros; porém nada deve interferir com o
pregador e o seu texto.
b) Aplicação: Pregação é
inevitavelmente, e na natureza do caso, a aplicação da palavra de Deus. Alguns
têm negado isso, ou pelo menos têm seriamente modificado esta visão. Até mesmo
aqueles que se chamam Reformados têm, ocasionalmente sentido um certo desconforto
com a conexão entre “exposição” e “aplicação”, já que a aplicação parece exigir
que o pregador seja muito direto na abordagem do seu povo a ponto de esperar
que o povo faça algo com a verdade que os confronta. Deve ser enfatizado que o
decisivo resultado da pregação não é o resultado de nossa habilidade ou
criatividade, paixão ou zelo, mas sim da obra de Deus por meio do Seu Espírito
nos corações daqueles que ouvem. Ao mesmo tempo está perfeitamente claro nas
Escrituras “que a verdade é para o bem; e a grande pedra angular da verdade é a
sua tendência a produzir santidade”;17 e esta pregação é de longe
muito mais do que anunciar: ela é exposição e aplicação; é a verdade levada à
vida; é verdade com uma dimensão moral e cognitiva (2 Tim. 4:1,2).
Aplicar a verdade na
pregação não é tarefa fácil; no entanto nós não teremos pregado enquanto
assim não tivermos feito. Os teólogos de
Westminster, no seu pequeno e maravilhoso tratado sobre o assunto, insistiam
que o pregador “não deve ficar só em doutrina geral, apesar de confirmar e
esclarecer, mas deve levá-la à vida e ao uso especial dos seus ouvintes por
meio da aplicação: o que, no entanto, se mostra um trabalho de grande
dificuldade para a pessoa, e que requer muita prudência, zelo e meditação, e
será muito desagradável para o homem natural e corrupto; no entanto ele deve
tentar apresentá-la de tal forma, que os seus ouvintes sintam a palavra de Deus
rápida e poderosamente, e como um discernidor dos pensamentos e propósitos do
coração; e que, se qualquer pessoa ignorante ou descrente estiver presente ele
possa ter os segredos do seu coração manifestos e dar glória a Deus”.18
c) Proclamação: Mas não podemos
parar por aí. Pois a pregação é a exposição e a aplicação da Palavra der Deus;
mas, além disso ela é proclamação. A própria palavra “pregar” no Novo
Testamento significa isso. Nós somos expositores e aplicadores; porém somos
expositores e aplicadores da Verdade
de tal forma que o que nós fazemos vem a ser proclamação. Nós somos arautos, com uma mensagem, que nos foi legada
para ser entregue às pessoas. Isso nos tira para fora de nós mesmos, nos eleva,
tirando-nos da esfera da comunicação ordinária. Nós estamos lidando com os
assuntos supremos de vida e morte, do céu e do inferno. Não somos de nós
mesmos; a mensagem que trazemos não é de nossa própria imaginação; o peso que é
colocado sobre nós não está confinado às preocupações do tempo e do espaço. O
pregador é o homem de Deus com a mensagem de Deus. E essa mensagem é da mais
desesperada urgência e conseqüência. Somos enviados a pessoas que vivem no
mundo das sombras da morte e temos as palavras de vida e luz nos lábios. Quando
um ministro reformado prega, ele o faz com a consciência do que consiste a sua
tarefa e qual a sua função. Ele deve se levantar e proclamar sua mensagem com o coração cheio de amor a Cristo e pelas
almas dos homens. Ele deve pregar clara e simplesmente, destemidamente,
pastoralmente e amorosamente; e ele deve pregar na certeza e consciência da
seriedade e majestade e da glória do que Deus está fazendo por meio dele. Ele
sabe que o Senhor está consagrando a Si a boca e a língua de um mero homem a
fim de ressoar por meio da própria pregação a voz do próprio Salvador. 19 O que nossa geração precisa não é de um grupo de
comunicadores, ou de oradores muito espertos, oradores eficazes, ou professores
interessantes, mas sim de um grupo de proclamadores do Evangelho que permanece
para sempre em toda sua riqueza e compreensibilidade.
d) Liberdade: Porém, uma
qualidade a mais da pregação no entendimento Reformado da palavra deve ser
mencionado: a sua liberdade. “Eu, irmãos,
quando fui Ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não o fiz com
ostentação de linguagem, ou de sabedoria. Porque decidi nada saber entre vós,
senão a Jesus Cristo, e este crucificado. E foi em fraqueza, temor e grande
tremor que eu estive entre vós. A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem
persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder”, (I
Cor.2:1-4). E de novo: “Portanto eu vos
protesto, no dia de hoje, que estou limpo do sangue de todos; porque jamais
deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus” (Atos 20: 26,27; e também 2
Co 5:10,11; 2 Tm 2:9). Dos primeiros pregadores do Evangelho, os apóstolos, nos
é dito: “Tendo eles orado, tremeu o lugar
onde estavam reunidos; todos ficaram cheios do Espírito Santo, e, com
intrepidez, anunciavam a palavra de Deus” (Atos 4; 31).
Calvino tem uma ótima palavra para
usarmos aqui:
“De acordo, Pedro, que era
bem instruído pelo Mestre em relação a quanto deveria fazer, não reserva nada
para si mesmo ou para outros a não ser compartilhar a doutrina como ela foi lhe
foi entregue por Deus. ‘Se alguém fala,
fale de acordo com os oráculos de Deus’ (I Pedro 4:11); isto é, não
hesitando ou tremendo como as consciências más estão acostumadas a fazer, mas
sim com a mais alta confiança que é apropriada ao servo de Deus equipado com as
suas ordens certas. O que seria isso senão rejeitar todas as invenções da
mente humana (de qualquer que seja a
mente que tenham vindo) a fim de que a pura Palavra de Deus seja ensinada e
apreendida na igreja do crente? O que é isso senão remover as ordenanças, ou
antes as invenções de todos os homens (qualquer que seja a sua posição), a fim
de que somente os decretos de Deus permaneçam fortes? Estas são aquelas ‘armas espirituais... poderosas em Deus para
destruir fortalezas’; por meio delas os fiéis soldados de Deus ‘anulando sofismas e toda altivez que se
levante contra o conhecimento de Deus, levando cativo todo pensamento `a obediência
de Cristo’ (2Cor 10: 4-5). Aqui, então, está o poder soberano com o qual os
pastores da igreja, qualquer que seja o nome que forem chamados, deveriam ser
equipados. Isto é, que eles se atrevam, a ousadamente fazer todas as coisas
pela Palavra de Deus; que eles possam, com força, fazer com que todo poder,
glória, sabedoria e exaltação do mundo se renda e obedeça à sua majestade.; que
eles sustentados pelo seu poder possam comandar do maior até o menor; possam
edificar a casa de Cristo e aniquilar a
de Satanás; possam alimentar as ovelhas e espantar os lobos; possam instruir e
ensinar aos que se deixam ensinar; possam acusar e repreender e subjugar os rebeldes
e teimosos; possam ligar e desligar; e finalmente, se necessário for, possam
lançar raios e trovões; no entanto, fazer tudo pela palavra de Deus”.20
É óbvio que deve haver alguma restrição na liberdade
ministerial na pregação da Palavra de Deus. Um ministro deve ser um pregador
responsável; e ele é livre para pregar apenas aquilo que está nas Escrituras.
Como o próprio Calvino aponta, a diferença entre os apóstolos e os seus sucessores é que “os primeiros eram
certamente escribas genuínos do Espírito Santo, e seus escritos devem portanto
ser considerados oráculos de Deus; mas o único ofício dos outros (dos
sucessores) é de ensinar o que foi
providenciado e selado nas sagradas Escrituras.’21 Além disso, um ministro é um dentre muitos; ele
está sujeito aos seus irmãos no Senhor, como um servo da Palavra de Deus na comunhão
da igreja.
É uma das glórias da forma bíblica de governo de
igreja, no entanto, que na tradição Reformada os ministros devem ser
preservados do falso ensino e doutrina herética assim como do discurso precipitado
no exercício do seu ofício, na sua relação com o presbitério e a sua supervisão
dos mesmos, mas ao mesmo tempo protegidos de qualquer desprazer malicioso nas
suas congregações quando o ressentimento pode brotar pela sua proclamação fiel
do Evangelho. O ministro na tradição Reformada é separado até certo grau da sua
congregação no que ele não pode ser dispensado pelo caráter profético da sua
pregação. De forma ordinária é claro que os pastores e o povo devem ser um só,
e ambos deveriam se regozijar na amizade que compartilham e no apreço que têm
um para com o outro. O pastor deveria estar preocupado em edificar; não em
arruinar. Mas cada ministro digno do seu sal, teve a experiência de ter sido
constrangido pela obediência à Palavra de Deus, a repreender e reprovar quando
há pecado, erro, visão curta na congregação; ele o faz sem medo e sem favor;
ele não é bajulador de homens. E ele o faz com um grande e potencial custo
próprio. Ao mesmo tempo, igrejas e instituições que clamam para si o nome de
cristãs, e existem para exaltar o nome de Cristo e levar avante a sua causa na terra,
devem fazer todo esforço possível para que a função profética do ministério
esteja sendo exercida com toda ousadia e liberdade. E deveriam agradecer a Deus
por tal coisa.
Não precisamos de palavras açucaradas, pensamentos
anuviados, pregadores que fazem concessões, cujo primeiro pensamento é se o que
eles vão dizer vai ou não ofender aos ouvintes ou a comunidade como um todo;
mas antes precisamos de pregadores cujo compromisso primordial e portanto o
primeiro impulso, seja a obediência ao senhor Jesus em cujo serviço eles foram
alistados, a quem eles pertencem, e a quem eles devem prestar contas.
Na sua luta com o Arcebispo John Whitgift, o
primeiro no ranking Elizabetano que freqüentemente parecia estar mais
interessado em agradar a rainha do que ao Senhor, e que resistiu até mesmo a
perseguir aqueles na igreja que insistiam na aplicação livre da palavra de
Deus, o grande teólogo Puritano e pregador Thomas Cartwright escreveu estas
nobres palavras:
“É verdade que deveríamos
ser obedientes aos magistrados civis que governam a igreja de Deus naquele
ofício que a ele é confiado, e de acordo com aquele chamado. Mas deve-se
lembrar que magistrados civis devem governá-la de acordo com as regras de Deus
prescritas na sua Palavra, e naquilo que são cuidadores assim também sejam servos
para a igreja, e no governo da igreja eles lembrem-se de se submeterem a
igreja, submeter seus cetros, lançar ao chão suas coroas, perante a igreja,
sim, como diz o profeta, lamber o pó dos pés da igreja. De maneira que não quero
dizer que a igreja ou extraia à força os cetros das mãos dos príncipes, ou tire
suas coroas das cabeças, ou que requeira que os príncipes lambam o pó dos pés
dela (como o fez o Papa sob esta pretensão), mas quero dizer, como o quer dizer
o profeta, que qualquer que seja a sua magnificência ou excelência ou pompa
deles ou das suas propriedades e posses, que
não fecha com a simplicidade (no entender do mundo) e pobreza e estado desprezível da igreja, que
eles estarão contentes em abrir mão”.22
Cartwright pagou um alto preço nos seus dias pela
sua obediência ao Rei dos reis: ele foi silenciado, aprisionado e exilado para
sua liberdade no exercício do seu ministério, enquanto que os bispos
bajuladores prosperaram e afloraram com suas consciências mortas e sua
preocupação em agradar sua Majestade. Talvez tenha de ser sempre assim. Mas
seja assim ou não – se a nós for dada a
liberdade dentro da igreja , de ser fiel à palavra de Deus ou ter de batalhar
continuamente por ela - não pode haver dúvida de onde está nosso dever. E o fato é que a luta jamais
acaba, enquanto a natureza humana permanecer do jeito que ela é, mesmo que em
princípio esteja convertida e humilhada aos pés da cruz de Cristo. Um ministro
na igreja de Jesus Cristo, reformada de acordo com a Palavra de Deus, jamais
pode passivamente aceitar uma imposição de silêncio que venha a ser ilegalmente
colocada sobre ele, mas ele dirá perante qualquer sinédrio que seja chamado a
comparecer: “Julgai se é justo diante de
Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus; pois nós não podemos deixar de
falar das coisas que vimos e ouvimos” (Atos
4:19,20). E numa palavra dos apóstolos que diz tudo que precisa ser dito:
“Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5:29).
1
Fred H. Klooster, A Singularidade da Teologia Reformada: Uma Tentativa
Preliminar de Descrição (Grand Rapids: O Sínodo Reformado Ecumênico, 1979). A
brochura inclui respostas de Raden Soedarmo, Sr. Eugene Osterhaven, W. van’t
Spijker, e John H. Leith.
2 A literatura é vasta e está crescendo.
Veja por exemplo, Harold Lindsell, A
Batalha pela Bíblia (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1976); e A Bíblia e o Equilíbrio (Zondervan,
1979); também as publicações do Conselho In ternacional de Inerrância Bbíblica
(Oakland, Califórnia). Por outro lado, Jack B. Rogers, ed., Davis, O Debate Sobre a Bíblia (Philadelphia:
Westminster Press, 1977); também Jack B. Rogers e Donald K. McKim, A Autoridade e a Interpretação da Bíblia:
Uma Abordagem Histórica (San Francisco: Harper e Row, 1979).
3
A discussão de João Calvino sobre a autoridade bíblica é de extrema importância
e é tão valiosa agora como foi no século 16; veja as suas Institutas da Religião Cristã,
, I/ 7,8,9.
4
A Confissão de Fé de Westminster, I/6.
5
Institutas, I/7/4; sobre o testemunho
do Espírito Santo veja também I/7/I; I/7/5;I/8/13.
6
G.C. Berkouwer, A Providência de Deus
( Grand Rapids:Wm. B. Eerdmans Pub Co., 1952), pp. 7ff.
8
Herman Bavinck, A Doutrina de Deus (
Banner of Truth Trust, 1977), p. 13.
9
Institutas, III/21-24.
10
Veja por exemplo Clark H. Pinnok, ed., Grace
Unlimited (Graça Ilimitada) (Minneapolis:Bethany Fellowship, Inc., 1975):
“Apesar de os ensaios não terem sido escritos de maneira polêmica, sua tese dá
ao livro um caráter controverso, no que nós estaríamos opondo um esforço
tremendo na ortodoxia Protestante limitando o evangelho e jogando uma sombra
sobre a sua disponibilidade e intenção universais, manifestando-se mais
abertamente no Calvinismo clássico. Esta teologia que, na sua doutrina terrível
de dupla predestinação, questiona a intenção de Deus de salvar a todos os
pecadores e como conseqüência lógica nega que Cristo morreu para salvar o mundo
como um todo, é simplesmente inaceitável exegeticamente, teologicamente e
moralmente, e devemos dizer a ela um ‘Não!’ enfático”. (p. 12; as palavras são
de Pinnock).
11 Veja o excelente livro de M. Eugene
Osterhaven O Espírito da Tradição Reformada -The Spirit of The Reformed Tradition
- (Grand Rapids: Wm.B. Eerdmans Pub. Co., 1971), especialmente o capítulo 4, “Na
Presença de Deus”, pp.88ff.
12 Otto W. Heick, A History of Christian Thought, Vol. I ( Philadelfia: Fortress
Press, 1965), p. 450.
13 Um estudo de grande ajuda sobre os
aspectos mais amplos do ministério de Calvino nesse respeito é W.Fred Graham, The Constructive Revolutionary: John Calvin
& His Socio-Economic Impact (Richmond: John Knox Press, 1971).
14 Em qualquer discussão sobre o “mandato
cultural”, a passagem fundamental a que invariavelmente se faz referência é
Gênesis 1:28, “E Deus os abençoou e lhes
disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai
sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, e sobre todo animal que rasteja
pela terra”. Está em vista a responsabilidade de sujeitar todas as áreas da
vida, cada aspecto da experiência ao senhorio de Deus e de considerar cada uma dessas áreas para o Seu
serviço.
15 Temos de reconhecer que na natureza do
caso até mesmo o melhor e mais puro dos cristãos é imperfeito; e apesar de
todos os nossos esforços de nos livrarmos daquelas coisas que não têm origem na
Palavra de Deus, aquelas idéias e tradições que são parte da bagagem que
trazemos conosco de outra esfera, resta aquilo que é inconsistente com o Evangelho.
Assim, os próprios Reformadores por exemplo, aceitaram o sacramentalismo e o territorialismo do seu tempo de
maneira inquestionável, apesar de estes terem sua gênese nos reinados dos
imperadores Romanos do quarto século, e não no Novo testamento. Muitos líderes
cristãos no século dezesseis tendiam a pensar nos limites da igreja e do estado
como quase co-extensivas. O fato de eles estarem enganados neste ponto não
anula o que eles procuraram fazer em termos de reino de Deus.
16 Veja, por exemplo João Calvino, Institutas, IV/ 3/3; e IV/3/I,2.
17 Citação da “Introdução” a A Forma de Governo, da forma ratificada
e adotada pela Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América, 1788.
18 O
Diretório do Culto Público, “Da Pregação da Palavra”, encontrado na Confissão de Fé, Catecismo Maior e
Menor, etc., editado pelo Comitê de Publicações da Igreja Presbiteriana
Livre da Escócia (1967),p. 380. E Pela Editora Os Puritanos/2000
19 Romanos 10:14 é de primeira
importância aqui. Paulo declara: “Como
porém invocarão aquele em que não creram? E como crerão naquele de quem nada
ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?”. O apóstolo está
declarando aqui que na pregação não é simplesmente a voz do pregador que é
ouvida, mas sim a própria voz do Senhor Jesus Cristo. Nas suas discussões de
pregação, esta idéia é muito proeminente na mente de Calvino.
20 Institutas,
IV/8/9.
21 Ibid.
22 As
Obras de John Whitgift, editado para a Parker Society por John Ayre, Vol
III ( Cambridge: The University Press, 1853), p. 189. As palavras de
Cartwright estão impressas ao longo das respostas de Whitgift.
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