Bruce Milne
Onde pode ser encontrada hoje a
igreja verdadeira e quais os seus aspectos essenciais? Em primeiro lugar
devemos distinguir os vários significados da palavra igreja:
1. Todo o povo de Deus em todos
os séculos, o conjunto total dos eleitos. Os Reformadores falaram disto como
sendo a igreja invisível.
2. A comunidade local dos
cristãos, reunidos visivelmente para adoração e ministério; este significado
abrange a vasta maioria das referências à igreja (ekklesia) do Novo
Testamento.
3. Todo o povo de Deus no mundo, em determinada época,
talvez melhor definida como a igreja universal. Esse sentido ocorre apenas
ocasionalmente no Novo Testamento (1 Co 10.32; Gl 1.13).
4. "A igreja dentro da
igreja". Notamos antes a distinção feita entre a edah (toda a congregação
visível) e os gahal (aqueles dentro dela que respondem ao chamado de
Deus). Jesus ensinou que o reino corresponde a este padrão: o joio está
misturado com o trigo (Mt 13.24-30; 36-43). Dentro do grupo identificado com
Cristo acha-se o povo de Deus, a verdadeira igreja. Não existe, então, uma
igreja pura; em meio a cada igreja pode haver pessoas que não professaram a sua
fé e outras cuja profissão será desmascarada no último dia (Mt 7.21-23).
Admitindo-se assim que uma igreja
pura ou perfeita não é possível deste lado da glória, onde podemos descobrir o
verdadeiro povo de Deus visivelmente reunido? Tradicionalmente, são
reconhecidos quatro sinais da igreja autêntica.
UNA
A unidade da igreja procede de seu
fundamento do único Deus (Ef 4.1-6). Todos os que pertencem verdadeiramente à
igreja são um só povo e, portanto, a igreja verdadeira será distinguida por sua
unidade.
Esta unidade, porém, não implica
necessariamente uniformidade total. Na igreja do Novo Testamento havia uma
variedade de ministérios (1 Co 12.4-6) e de opiniões sobre assuntos de
importância secundária (Rm 14:1-15:13). Embora houvesse uniformidade nas convicções
teológicas básicas (1 Co 15.11, BLH; Jd 3), a fé comum recebia ênfases diversas,
segundo as diferentes necessidades percebidas pelos apóstolos (Rm 3.20; cf. Tg
2.24; Fp 2.5-7; cf. Cl 2.9s).
Havia também uma variedade de
formas de adoração. O tipo de culto em Corinto (1 Co 14.26ss) não era comum nas
igrejas palestinas, onde a adoração se baseava no modelo da sinagoga judaica e
tinha um padrão mais formal, centrado na exposição da palavra escrita. Este
modelo tirado da sinagoga justifica o fato de as igrejas do primeiro século
serem consideradas um ramo do judaísmo. Tiago 2.2 usa até mesmo a palavra
sinagoga para a reunião dos cristãos. Existem também elementos discerníveis de
mais de uma forma de governo da igreja.
A verdadeira unidade no Espírito
Santo de todo o povo regenerado é um fato independente da desunião
denominacional exterior. O chamado para a unidade no Novo Testamento é,
portanto, uma ordem para manter a unicidade fundamental da vida que o Espírito
concedeu através da regeneração (Ef 4.3). Os Reformadores salientaram este
ponto, distinguindo entre a igreja invisível (todos os eleitos que são verdadeiramente
um em Cristo) e a igreja visível (um grupo misto de regenerados e
não-regenerados). A unidade da igreja invisível é um fato consumado, concedido
com a salvação.
Roma tem usado este sinal de
maneira polêmica, a fim de proclamar sua unidade, comparando-a à fragmentação
do protestantismo, como uma evidência de ser a verdadeira igreja. Isto, no
entanto, ignora três pontos: (i) A própria Roma separou-se da igreja ortodoxa
em 1054, e jamais tinha sido considerada universalmente como a única igreja
verdadeira em séculos anteriores; por exemplo, a igreja celta floresceu na
Inglaterra, e Patrício fundou a igreja inglesa muito antes de os missionários
romanos terem chegado a Inglaterra. (ii) Os sinais devem manter-se juntos. A sucessão
histórica e a unidade exterior não têm validade quando não associadas à
lealdade e ao evangelho apostólico. (iii) Embora o protestantismo tenha-se
mostrado às vezes necessariamente desagregador, pode ser argumentado que, através
de seu desvio da doutrina bíblica, é a própria Roma que tem sido a maior causa
de cismas no correr dos séculos.
As Escrituras encorajam a mais
plena expressão de unidade possível entre o povo de Deus, mas elas também
tornam claro que a divisão acha-se perfeitamente de acordo com a vontade divina
quando a essência do Cristianismo Apostólico estiver em risco. Esta foi a razão
da discórdia entre Paulo e os judaizantes (Gl 1.6-12), e entre Jesus e os
fariseus (Mc 7.1-13). É significativo notar que quando Judas pretendeu escrever
sobre a salvação que temos em comum, ele achou necessário insistir com os
leitores para "batalhar diligentemente pela fé que uma vez foi entregue aos santos"
(Judas 3). Para o Novo Testamento, a unidade está baseada em um compromisso
consciente com as verdades reveladas do Cristianismo Apostólico.
O Novo Testamento dirigiu seus
ensinos sobre a unidade a grupos específicos, com implicações imediatas para
seus relacionamentos visíveis (Ef 2.15; 4.4; Cl 3.15). Jesus orou pela unidade,
que ajudaria o mundo a crer (João 17.21); embora o paralelo entre esta unidade
e a dEle com o Pai (17.11,22) confirme o caráter essencialmente espiritual da
unidade bíblica, esta certamente inclui identificação visível de vida e
propósito, pois Jesus em toda a sua missão expressou uma união visível e
demonstrável com o Pai. Em outras palavras, é preciso buscar uma unidade
visível mais plena do que aquela que está sendo experimentada pelos que são
fiéis ao evangelho apostólico.
Este fato tem especial
importância quando dois ou mais grupos que têm uma fé bíblica estiverem
operando na mesma área, como, por exemplo, em um campus universitário. O desafio
mais profundo deste ensinamento, porém, situa-se ao nível dos relacionamentos
na igreja local. Nesse ambiente, a unidade da vida em Cristo deve expressar-se
através do cuidado e compromisso genuínos e tangíveis de uns para com os
outros. Na ausência disto, a reivindicação de ser uma verdadeira igreja cristã
é posta em dúvida (1 Co 3.3s).
SANTA
O povo de Deus forma a nação
santa (1 Pe 2.9). No sentido mais profundo a igreja é santa, da mesma forma que
todo indivíduo cristão é santo em virtude de estar unido a Cristo, separado
para ele e revestido com sua justiça perfeita. Na sua posição diante de Deus em
Cristo, a igreja é irrepreensível e isenta de qualquer mancha moral. A
distinção entre a igreja visível e a invisível aplica-se aqui, desde que esta
santidade imputada não pertence aos membros da igreja não confiam pessoalmente
em Cristo como Salvador.
A união com Cristo envolve também
uma santidade de vida que seja visível. Desse modo, a relação da igreja com
Cristo, o seu cabeça, será expressa no caráter moral e nas características
especiais de sua vida e de seus relacionamentos comunitários. A igreja alheia à
santidade é alheia a Cristo. Quando Cristo dirigiu-se à sua igreja, ele
esperava dela essa mesma diferença moral e foi severo em seu julgamento quando
observou que ela lhes faltava (Ap 2.-3).
A fim de não desanimarmos ao
aplicar este teste, vale a pena lembrar que grande parte da vida da igreja do
Novo Testamento foi eivada de erros, divisões, falhas morais e instabilidade.
Não obstante, a presença de um sinal visível de santidade é uma característica
invariável da igreja de Deus.
CATÓLICA
O termo católico significa
literalmente abrangendo ao todo. E em seu uso primitivo, significava ser a
igreja universal, distinguindo-a da local; mais tarde, veio significar a igreja
que professava a fé ortodoxa, em contraste com os hereges. Com o passar do
tempo, Roma adotou o termo para referir-se a si mesma como instituição
eclesiástica, centrada no papado, historicamente desenvolvida e geograficamente
difundida. Os reformadores do século dezesseis procuraram restaurar o
significado anterior da catolicidade, em termos do reconhecimento da fé
ortodoxa; nesse sentido, argumentavam eles, a igreja católica era de fato eles
e não Roma.
O principal aspecto da
catolicidade da igreja primitiva estava na sua abertura para todos. Distinta do
judaísmo, com seu exclusivismo racial, e do gnosticismo, com seu exclusivismo
cultural e intelectual, a igreja abriu seus braços a todos que quisessem ouvir
a mensagem e aceitar seu salvador, sem levar em conta cor, raça, posição
social, capacidade intelectual e antecedentes morais. Ela surgiu no mundo como
uma fé para todos (Mt 28.19; Ap 7.9). A única exigência para admissão era a fé
pessoal em Jesus Cristo como Salvador e Senhor, com o batismo como o rito
autorizado de entrada, porque manifestava o evangelho da graça (Mt 28.19; At
2.38,41).
É neste nível fundamental que
esta característica (a de ser católica) deve ser entendida. As igrejas que
exigem outros testes devem ser consideradas como suspeitas. Não existe lugar
numa verdadeira igreja para a discriminação de qualquer tipo, seja racial, de
cor, social, intelectual ou moral, neste último caso desde que haja evidência
de verdadeira arrependimento. A discriminação denominacional também precisa ser
examinada com cuidado nos
casos em que as doutrinas fundamentais
bíblicas sejam claramente reconhecidas.
APOSTÓLICA
O apóstolo é uma testemunha do
ministério e da ressurreição de Jesus; é um arauto autorizado do evangelho (Lc
6.12s; At 1.21s; 1 Co 15.8-10). Os arautos tomam posição entre Jesus e todas as
gerações subseqüentes da fé cristã; nós só nos achegamos a ele por meio dos
apóstolos e de seu testemunho sobre ele, incorporado no Novo Testamento. Neste
sentido fundamental, toda a igreja é "edificada sobre o fundamento dos
apóstolos" (Ef 2.20; cf. Mt 16.18; Ap 21.14). A apostolicidade da igreja
encontra-se, portanto, no fato de ela conformar-se à fé apostólica "que
uma vez por todas foi entregue ao santos" (Jd 3; cf. At 2.42). Os
apóstolos ainda governam e organizam a igreja na medida em que esta permite que
sua vida, seu entendimento e sua pregação sejam constantemente reformados pelos
ensinos das Sagradas Escrituras.
Desde que o apóstolo significa
literalmente enviado, não é de surpreender que o Novo Testamento refira-se
ocasionalmente a outros apóstolos (Rm 16.7). Neste sentido geral, todos os que
são hoje enviados pelo Senhor como evangelistas, pregadores, iniciadores de
igrejas, etc. são no grego do Novo Testamento, apostoloi, enviados. Isto
não subentende de forma alguma que eles tenham uma posição de autoridade
especial, competindo com a do grupo original cujo governo continua através das
escrituras apostólicas. Reivindicar o cargo apostólico em nossos dias é
compreender erradamente o ensino bíblico e oferece na prática um desafio grave
com respeito à autoridade e finalidade da revelação divina do Novo Testamento.
É igualmente errado entender a
apostolicidade como uma continuidade histórica do ministério, retrocedendo até
Cristo e seus apóstolos através de uma sucessão de bispos. Esta interpretação
não tem nenhum apoio bíblico. Toda noção da graça de Deus comunicada mediante
uma sucessão histórica de dignatários da igreja contraria o caráter da própria
graça, conforme os escritos bíblicos. Além disso, como garantia da verdade da
mensagem apostólica, a sucessão episcopal evidentemente falhou. Foi uma igreja
perfeitamente enquadrada nesta sucessão histórica que precisou da Reforma do
século dezesseis, para não mencionar outras reformas menores, como o
despertamento do século dezoito com Whitefield e os Wesleys.
O catolicismo romano estende esta
interpretação de "apostólico" para incluir a reivindicação de que o
Bispo de Roma é o sucessor histórico de Pedro e o guardião especial da graça de
Deus na igreja. A alegação é insustentável. A primazia de Pedro entre os
apóstolos não passou de uma clara liderança no período da primeira missão
cristã. Ele claramente recuou para um segundo plano à medida que a igreja
avançou fora de Jerusalém, sendo Paulo nomeado para liderar a missão fora da
Palestina e quando João lutava para corrigir as igrejas prejudicadas pelos
falsos mestres. É bem significante que Pedro não apareceu no papel principal no
Concílio de Jerusalém (At 15), e que ficou claramente à sombra de Paulo no
incidente registrado em Gálatas 2.
Roma alega ainda que esta suposta
supremacia de Pedro deveria continuar para a salvação eterna e bem contínuo da
igreja. Nenhum dos versículos citados como apoio escriturístico (Mt 16.18s; Jo
21.15-17 e Lc 22.32) faz qualquer referência a um sucessor de Pedro. Essas duas
reivindicações romanas contrariam a evidência manifesta no Novo Testamento, e a
terceira, de que a primazia de Pedro se estende ao bispo de Roma, é ainda menos
digna de crédito. O fato de Pedro ter terminado sua vida como mártir em Roma é
uma tradição primitiva que encontra apoio razoável; as dificuldades histórica,
porém, para mostrar que houve uma sucessão estabelecida de bispos monárquicos
de Roma, a partir do primeiro século, são intransponíveis.
A sucessão apostólica é na
verdade a sucessão do evangelho apostólico, quando o depósito original de
verdade apostólica é passado de uma para outra geração: "homens fiéis ...
para instruir a outros" (2 Tm 2.2). A igreja é apostólica à medida que
reconhece na prática a autoridade suprema das escrituras apostólicas.
OS SINAIS DOS REFORMADORES
Embora os Reformadores não
pusessem de lado esses quatro sinais tradicionais, as controvérsias em que se
viram envolvidos prenderam sua atenção em outras coisas. Eles identificaram
duas características da igreja verdadeira e visível. "Onde quer que
vejamos a Palavra de Deus pregada e ouvida em toda a sua pureza e os
sacramentos ministrados segundo a instituição de Cristo, não há dúvida de que
existe uma igreja de Deus" (João Calvino).
"A Palavra pregada em toda a
sua pureza" trouxe à tona a supremacia do evangelho bíblico e forma
precisamente nesse ponto que surgira a verdadeira ruptura com Roma. Atrás desta
ênfase havia uma convicção quanto ao elo indissolúvel entre a Palavra escrita e
o Espírito; pertencer à comunidade do Espírito iria necessariamente refletir a
submissão à Palavra que o Espírito havia inspirado. Os Reformadores
desconheciam qualquer Espírito que não levasse à Palavra; desconheciam qualquer
amor por Deus que não estivesse ligado à fé e à verdade. O outro ponto em que
discerniram a verdadeira igreja, os sacramentos, era também polêmico, já que
foi no aspecto do ensino e da prática com relação aos sacramentos que os Reformadores
viram a mais clara violação da religião bíblica por parte de Roma.
A existência de grupos cristãos
(p. ex. o Exército da Salvação e a Sociedade dos Amigos) que não possuem
sacramentos faz-nos hesitar quanto à afirmação de que os sacramentos são
essenciais para que a igreja seja verdadeira. Não obstante, nosso Senhor
claramente considerou o batismo como intimamente ligado à mensagem da igreja e
à resposta humana a ela (Mt 28.19s), e a participação na Ceia como fundamental
para a vida da igreja (Lc 22.19; 1 Co 11.24s).
Podemos generalizar esses sinais
afirmando que o sinal supremo para os Reformadores era o próprio Cristo. Ele é
o centro da Palavra e o cerne dos sacramentos.
A MISSÃO – UM SINAL AUSENTE?
Nas instruções de Jesus sobre a
vida da igreja (Jo 13-16; Lc 10.1-20; At 1.1-8), encontramos um elemento não
abordado nas características da igreja identificadas até agora, que é a missão:
a responsabilidade de levar as boas novas de Jesus aos confins da Terra.
Existe certamente grande
significado no fato de a história da igreja do Novo Testamento, o livro de
Atos, Ter como seu tema principal a expansão sucessiva na pregação do
evangelho: Jerusalém, Judéia, Samaria, e, em seguida, o mundo gentio (1.8; cf.
6.8s; 7; 8; 10.34-38; 11.19-26; 13.1ss). A igreja é missão talvez seja uma
frase exagerada, mas em seu serviço total ao propósito e à glória de Deus, a
missão é um ingrediente bíblico fundamental.
Assim sendo, uma igreja que não
prega o evangelho não sente a responsabilidade pelo bem-estar moral e
espiritual dos que a rodeiam, nem expressa interesse pelos pobres e necessitados
onde quer que eles sejam encontrados, perdeu seu direito à autenticidade,
constituindo-se numa negativa viva de seu Senhor.
Para resumir: a verdadeira igreja
será reconhecida pela sua unidade nos relacionamentos, pela sua santidade de
vida, pela sua abertura a todos, pela sua submissão à autoridade das
escrituras, pela sua pregação de Cristo em palavras e sacramentos, e pelo seu
compromisso com a missão.
Texto retirado do livro CONHEÇA A
VERDADE ESTUDANDO AS DOUTRINAS DA BÍBLIA, de Bruce Milne. ABU Editora. pp. 222-228.
Nenhum comentário:
Postar um comentário