Alister E. McGrath
Extraído de
A Life of John
Calvin . A Study in the Shaping of
Western Culture. Oxford ,
UK &
Cambridge , MS :
Blackwell , 1990, p.147-151.
Traduzido por Carlos
Ribeiro Caldas Filho.
Calvino é geralmente considerado
um sistematizador frio e sem paixão, mais uma mente que uma personalidade, uma
figura reservada e socialmente isolada que sentia-se mais em casa no mundo das
idéias que no mundo real de carne, sangue e relacionamentos humanos[1]. A
concepção popular do pensamento religioso de Calvino é a de um sistema
rigorosamente lógico, centrado sobre a doutrina da predestinação. Por mais
influente que esta imagem popular possa ser, tem pouca relação com a realidade.
Ainda que a predestinação seja importante para o calvinismo posterior, isto não
se reflete na exposição de Calvino da idéia. Não obstante esta crença popular
levanta uma questão importante. Pode-se falar do pensamento de Calvino como
sendo em primeiro lugar um sistema? A
palavra “sistema” implica em suposições subjacentes de unidade[2], e
clama por coerência. Entretanto, Calvino compartilhava o intenso desgosto da
república humanista das letras pelos teólogos escolásticos, cujas
palavras-chave poderiam ter sido “sistematização” e “coerência”. Falar de
Calvino como um teólogo sistematizador implica em um grau de afinidade com o
escolasticismo medieval que contradiz suas atitudes conhecidas. Também sugere
um deslocamento significativo entre Calvino e sua cultura, que não possuía os
recursos intelectuais nem percebeu nenhuma razão particular para produzir obras
de “teologia sistemática”[3] –
um gênero literário que de qualqur modo estava firmemente identificado com a
preservação do tão desprezado escolasticismo. É somente por considerar as Institutas como consistente com, ao
invés de uma exceção radical ao, o humanismo bíblico da época de Calvino que a
significado da obra pode ser plenamente apreciado[4].
É certo que as Institutas de 1559 tem sido
freqüentemente comparadas à Summa Theologiae
de Tomás de Aquino – com suas 512 questões, 2.669 artigos e mais de 10.000
objeções e réplicas - em sua abrangência e influência. Mas isto é confundir
puro volume literário e influência histórica com afinidade teológica. Como um
estudo da evolução das Institutas
indica, Calvino originalmente concebeu a obra em termos modestos, sem qualquer
pretensão à abrangência metodológica. A reordenação do material entre as
edições no período de 1536 a 1559 reflete considerações mais pedagógicas que
metodológicas. A preocupação de Calvino é mais humanista que escolástica –
ajudar seus leitores, ao invés de impor-lhes um método sobre o pensamento. As Institutas de 1559 combinam as virtudes
cardeais da educação humanista – clareza e compreensividade – permitindo a seus
leitores acesso a uma apresentação clara e completa dos principais pontos da fé
cristã, que Calvino desejava que fossem entendidos. Em nenhum ponto há qualquer
evidência que sugira um princípio condutor, axioma ou doutrina – exceto a
clareza de apresentação – que governasse a forma ou a substância da obra. Isto
é uma expressão da eloquentia, tão
altamente apreciadas pela Renascença, em sua estrutura e em sua prosa.
O analista que, por qualquer
razão, pressuponha um princípio unificador interno no pensamento de Calvino
está naturalmente predisposto a encontrar um. A erudição sobre Calvino
apresenta uma abundância de estudos que, presumindo haver um princípio
unificador interno no pensamento de Calvino, tem tentado identificá-lo em sua
doutrina da predestinação,[5]
sua doutrina do conhecimento de Deus[6] ou
sua doutrina da igreja[7].
Uma abordagem mais modesta (e, deve ser dito, mais realista) envolve admitir o
óbvio, e reconhecer que não há uma
doutrina central no pensamento de Calvino[8]. A
simples idéia de um “dogma central” tem sua origem no monismo dedutivo do
Iluminismo, não na teologia do século dezesseis[9]. Podem-se
localizar certos temas nuclearmente importantes, certas metáforas fundamentais,
que permitem insights no pensamento
religioso de Calvino – mas a noção de uma doutrina ou um axioma central que o
controle não pode ser sustentada. Não há um “núcleo”, nem “princípio básico” ou
“premissa central”, nenhuma “essência” do pensamento religioso de Calvino.
É entretanto evidente que em cada
parte de sua discussão do relacionamento sobre Deus e a humanidade, Calvino considera
um paradigma simples como normativo. O paradigma em questão é o que foi feito
possível pela encarnação, a saber, a união sem fusão da divindade e humanidade
na pessoa de Jesus Cristo. Vez após vez, Calvino apelas à fórmula cristologicamente
baseada, distinctio sed non separatio[10].
Neste ponto, duas idéias podem ser distintas,
porém não separadas. Portanto o
“conhecimento de Deus” e o “conhecimento de nós mesmos” podem ser distinguidos;
não podem entretanto estar um isolado do outro. Assim como a encarnação
representa um exemplo paradigmático deste complexio
oppositorum, então o mesmo padrão é repetido e pode ser discernido através
de várias manifestações do relacionamento entre Deus e a humanidade. A partir
do fato que Calvino enfatiza que a teologia está centralizada sobre o
“conhecimento de Deus e conhecimento de nós mesmos” (Institutas I.1.I), este paradigma é nitidamente importante. Através
de suas obras, Calvino apresenta uma tendência de distinguir radicalmente os
reinos divino e humano – não obstante insiste em sua unidade. Não há
possibilidade de separar Deus e o mundo, ou Deus e os seres humanos. Este
princípio pode ser visto em operação através das Institutas[11]:
a relação entre a palavra de Deus e as palavras dos seres humanos na pregação;
entre o sinal e o objeto significado na eucaristia; entre o crente e Cristo na
justificação, onde uma real comunhão de pessoas existe, mas não uma fusão de
ser. Entre o poder secular e espiritual. O pensamento de Calvino é profundamente
cristocêntrico, não apenas pelo fato que se centraliza na revelação de Deus em
Jesus Cristo, mas também em que esta revelação expõe um paradigma que governa
outras áreas chaves do pensamento cristão. Onde quer que Deus e a humanidade
estejam em conexão, o paradigma encarnacional ilumina sua relação. Se há um
centro do pensamento religioso de Calvino, este centro pode razoavelmente ser
identificado com Jesus Cristo mesmo[12].
Sugerir que não é inteiramente
apropriado designar o pensamento religioso de Calvino como um “sistema” não
implica em afirmar que falta-lhe coerência ou consistência interna. Antes, é
enfatizar a habilidade com que Calvino, aparentemente atuando como um teólogo
bíblico, e não como um filósofo sistemático, foi capaz de integrar um número de
elementos dentro da estrutura geral de seu pensamento. Ele pode não ter
desenvolvido um “sistema teológico” no sentido estrito do termo; não obstante,
ele foi inquestionavelmente um pensador sistemático, que plenamente reconheceu
a necessidade de garantir consistência interna entre os vários componentes de
seu pensamento.
Após o tempo de Calvino, surge
uma nova preocupação com método. Aconteceu uma mudança significativa no clima
intelectual, enquanto o novo interesse humanista em questões metodológicas se
desenvolvia, com o resultado central que a sistematização não era mais
considerada como propriedade particular dos desprezados teólogos escolásticos.
Em parte, devido à crescente influência da escola humanista em Pádua, cuja
ênfase na importância do método (e as contribuições de Aristóteles a esta
ciência) ganhou uma simpatia crescente na Renascença posterior. Se fosse para
manter respeitabilidade e credibilidade intelectual, o calvinismo teria que
reformar-se conforme o novo padrão sistemático. Os sucessores de Calvino no fim
do século dezesseis, confrontados com a necessidade de impor um método ao seu
pensamento, acharam que sua teologia era eminentemente adequada para esta reformulação
dentro de estruturas mais rigorosamente lógicas sugeridas pela metodologia
aristotélica favorecida pela Renascença italiana tardia. Isto talvez levou à
conclusão que o pensamento de Calvino possui a forma sistemática e rigor lógica
da ortodoxia reformada posterior, e tem permitido a preocupação da ortodoxia
com a doutrina da predestinação ser lida nas Institutas de 1559. Há uma diferença sutil entre Calvino e o
calvinismo neste ponto, marcando e refletindo um ponto de mutação na história
intelectual em geral. Se os seguidores de Calvino desenvolveram suas idéias,
foi em resposta a um novo espírito da época, que incluía sistematização e
preocupação pelo método como intelectualmente respeitável e desejável. O
luteranismo falhou em reconhecer a significância desta mudança decisiva no
clima intelectual; quando os escritores luteranos adotaram os novos métodos,
virtualmente uma geração inteira tinha passado, e a superioridade intelectual
do calvinismo parecia assegurada.
É útil identificar pelo menos das
mais significativas influências sobre as idéias de Calvino. Em primeiro lugar,
deve-se enfatizar que Calvino é um teólogo bíblico. A primeira e mais
importante fonte de suas idéias religiosas era a Bíblia. A obra de Calvino como
um comentarista bíblico serve para reforçar a impressão geral que se tem a
partir de uma leitura atenta das Institutas:
ele considerava-se como um expositor obediente da Bíblia. Textos, entretanto,
requerem interpretação. Calvino tinha acesso a, e teve pouca hesitação em usar as
principais novas técnicas de teoria literária, crítica textual e análise
filológica que a Renascença tornara disponíveis. Ele era um humanista, e
explorava as técnicas da república das letras para seu trabalho como um
expositor bíblico.
Enquanto a principal preocupação
de Calvino era a interpretação das Escrituras, sua leitura do texto bíblico foi
enriquecida e informada pela tradição cristã[13].
Ele não hesitou em desenvolver a tese que originalmente defendeu na Disputa de
Lausanne – que a Reforma representou uma recuperação do ensino autêntico da
igreja primitiva, eliminadas as distorções e adições espúrias do período
medieval. Acima de tudo, Calvino considerava seu pensamento uma exposição fiel
das principais idéias de Agostinho de Hipona[14].
“Agostinho é totalmente nosso!”[15].
Ele tinha alta consideração por alguns dos antigos escritores medievais, como
Bernardo de Claraval[16].
Ainda que tivesse a tendência de considerar a teologia medieval posterior como
irrelevante, é evidente que Calvino incorporou pelo menos alguns de seus
métodos e pressuposições ao seu pensamento[17]. Seu
voluntarismo e seu apelo sutil ao método lógico-crítico são ilustrações de uma
finidade, não necessariamente com algum escritor ou escola de pensamento específica, mas com a forma intelectual
padrão da teologia contemporânea de seus dias. Finalmente, seu débito à
primeira geração de reformadores é evidente – para citar apenas três, Lutero,
Bucer, seu amigo de Estrasburgo, e o erudito Philip Melanchthon[18].
[1]
Para uma discussão a respeito, consultar Selinger, Calvin against Himself, 72-84.
[2]
Quanto ao problema geral dentro da história intelectual (e não simplesmente a
teologia histórica) consultar H. Kellner, ‘Triangular Anxieties: The Present
State of European Intellectual History’, in D. LaCapra e S. L. Kaplan (eds.), Modern European Intellectual History (Ithaca,
N.Y., 1982), pp. 16-31.
[3] Um
ponto fortemente enfatizado por Bouwsma, John
Calvin, 4-6.
[4] Cf. Willis, ‘Rethoric and
Responsibility in Calvin’s Theology”.
[5] Schweizer, Die protestantischen Centraldogmen, 1-18, 150-179. Mais
genericamente, L.
Boettner , The Refomed Doctrine of Predestination (Grand Rapids, 1968).
[6] Dowey, Knowledge of God in Calvin’s Theology, 41-49.
[7] Milner, Calvin’s Doctrine of the Church, 1-5.
[8] Partee, ‘Calvin ’s
Central Dogma Again’.
[9] Um ponto
enfatizado por Bauke, Die Probleme der
Theologie Calvins, 22, 30-31.
[10] Milner, Calvin’s Doctrine of the Church, 2-3.
[11] Cf. Niesel ,
Theology of Calvin, 247-250; Milner, Calvin’s Doctrine of the Church, 191.
[12] A
sugestão de escritores antigos, tais como Ernst Troeltsch, que Calvino é menos
cristocêntrico que Lutero, baseia-se em hipóteses então prevalecentes da
erudição a respeito de Calvino – especialmente concernentes à centralidade da
predestinação – atualmente estas
hipóteses estão há muito abandonadas.
[13]
Lane em ‘Calvin’s Use of the Fathers and
Medievals’, apresenta uma análise esplêndida desta questão.
[14]
Consultar a análise de Smits, Saint
Augustine dans l’oevre de Jean Calvin.
[15]
OC 8.266 (a sigla OC refere-se aos comentários e sermões de Calvino na edição
do Corpus Reformaturum. No caso
específico desta citação, OC 8.266 refere-se à página 266 do volume 8. Nota do
tradutor).
[16] Cf. Lane ,
‘Calvin ’s Sources of St Bernard’.
[17] Cf. Reuter ,
Vom Scholaren bis zum jungen Reformator, 6-12; McGrath, ‘John Calvin
and Late Medieval Thought’.
[18] Cf. Ganoczy ,
The Young Calvin ,
137-151, 158-168.
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