Por: Claudio Souza
Para entender o pensamento de João Calvino em relação a
justificação pela fé, é necessário observar pela ótica da soberania de Deus.
Para Calvino, todos os atos na economia da salvação
apresentam a vontade soberana de Deus.
Calvino, em suas Institutas, trabalha a justiça de Deus
como um ato soberano em conceder graça ao pecador. Ele afirma “que nenhum
conhecimento depois da queda valeu para a salvação sem o Mediador, que é cristo
que nos leva ao verdadeiro conhecimento para a salvação”.[1] A ênfase
estabelecida neste caso, é que somente em Cristo é revelado o verdadeiro
conhecimento que resulta na união com o Criador através da fé, como afirma John
H. Gerstner “a fé, como a união como Cristo, possui a justiça de Cristo que
justifica perfeitamente para sempre”.[2] A fé é um instrumento usado por
Deus em conceder graça ao pecador, portanto, todos que crêem se unem a Jesus
Cristo em união espiritual, de tal forma que “o pecador não só se torna participante
de todos os benefícios, mas também do próprio Cristo”.[3]
“Calvino, foi o grande teólogo do movimento protestante da
segunda geração, talvez seja quem nos tem dado as declarações mais claras sobre
a sola fides”.[4]Calvino ressalta que a fé é uma vasilha que precisa ser
preenchida por Cristo:
“Pois se a fé justificasse por si mesma ou por meio de algum
poder intrínseco, por assim dizer, como ela é sempre fraca e imperfeita, ela
faria isso só em parte; e assim a justiça que nos conferisse um fragmento da
salvação seria defeituosa. Ora, não imaginemos nada assim, mas dizemos que,
falando apropriadamente, Deus somente justifica; e então transferimos essa
mesma função a Cristo porque ele nos foi dado para justiça. Comparamos a fé a
uma espécie de vasilha; porque a não ser que cheguemos vazios e receptivos e
com a boca de nossa alma aberta para buscar a graça de Cristo, não somos
capazes de receber Cristo. Disso decorre que, ao ensinar que antes de sua
justiça ser recebido, Cristo é recebido em fé, não retiramos de Cristo o poder
de justificar”.[5]
Neste aspecto, entende-se que Cristo é o único canal de
justiça que ministra a perfeita vontade de Deus em levar o homem a à salvação.
Portanto, o homem é justificado mediante a fé independente de suas obras que
são inúteis para Deus. A problemática encontra-se na condição do homem que,
depois da queda, se tornou inútil para com Deus.
Calvino comenta que a raça humana se desviou totalmente do
seu Criador. O pecado passou a habitar no coração do homem, fazendo-se assim, um
fator primordial para a depravação total da raça humana. Com isso, todas as
virtudes que haviam no homem foram corrompidas diante da face do Senhor, como
afirma em seu comentário aos Romanos:
Portanto o pecado reside em nós, e não na lei. A cauda do
pecado consiste no desejo corrupto de nossa carne. Chegamos à consciência dele
através de nosso conhecimento da justiça de Deus que nos é declarada na lei.
Não devemos chegar a conclusão de que não houve qualquer distinção entre o
certo e errado fora do âmbito da lei, senão que à parte da lei nos achamos ou
completamente obscurecidos para discernir nossa própria depravação, ou que nos
tornamos inteiramente privados de sendo em virtude de nosso envaidecimento.[6]
Com esse pensamento, Calvino enfatiza que as promessas de
Deus não podem estar condicionadas ao esforço humano, uma vez que, a natureza
decaída do homem o leva a valores que afetam não somente a moralidade, mas
também a crença, conforme Rm. 1:18-27.
Portanto, o homem não pode ter qualquer mérito diante de seu
Criador, devido à sua pecaminosidade que o afetou por completo e dominou todo o
ser, como Calvino mesmo relata nas Institutas:
Pela qual razão, disse eu que desde que Adão se apartou da
fonte da justiça todas as partes da alma vieram a ser possuídas pelo pecado.
Pois, nem apenas o seduziu um desejo inferiou; ao contrário, a própria cidadela
da mente ocupou a nefanda impiedade e ao mais recôndito do coração penetrou o
orgulho, de sorte que é improcedente e estulto restringir a corrupção que daí
emanou apenas ao que chamam de impulsos sensuais, ou chamar de acendelha que
atraia, excite e arraste ao pecado somente a parte que lhes é a
sensualidade.[7]
O que Calvino expressa é a atual condição do homem, ou seja,
após a queda, todas as faculdades do homem se corromperam e, consequentemente,
todo o conhecimento de Deus foi distorcido com a queda, fazendo o homem perder
a harmonia com o seu criado. Este processo, no entanto, fez com que o homem se
anulasse para com Deus em relação à sua justiça, impossibilitando uma
verdadeira adoração e o conhecimento de Deus e de si mesmo.
O entendimento neste caso, é que, “a depravação adâmica se
tornou hereditária para toda a raça humana”,[8] de modo que toda a
natureza humana se faz condenável à ira de Deus e, consequentemente, todas as
obras que o homem possa fazer para com o seu criador “são nulas e que, de fato,
resultam em adultérios, fornicações, furtos, ódios, homicídios nas quais
chamamos de furtos do pecado”.[9] Sendo assim, a Soberania de Deus
intervindo na vida do homem, faz-se necessária para que este tenha a salvação.
Portanto, a queda do homem trouxe uma calamidade na vida em
toda a criação, por isso, Deus abomina a iniqüidade. O pecador não pode achar
graça em si mesmo enquanto é pecador, porque a salvação é da infinita
misericórdia de Deus em cumprir o propósito que estava estabelecido desde a
fundação do mundo, cof. Ef. 1:11 “nEle, digo, no qual fomos também feitos
herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as cousas
conforme o conselho de sua vontade”.
Nesta linha de pensamento, Calvino é claro quanto a esta
questão. Ele ressalta que o ser humano é incapaz de produzir uma justiça
propriamente sua que não seja em Cristo. Uma vez que a morte de
Cristo é a nossa redenção, como ele expressa em seu comentário aos Gálatas:
Porquanto ele sofreu para conquistá-la para nós; e por que
haveríamos de buscar em outra fonte o que nós mesmos podemos nos dar? Se a
morte de Cristo é a nossa redenção, então éramos cativos; se ela é pagamento,
então éramos devedores; se é expiação, então éramos culpados; se é purificação,
então éramos imundos. E assim, em contrapartida, aquele que atribui sua
purificação, seu perdão, a expiação, sua justiça ou seu livramento às suas
obras, está invalidando a morte de Cristo.[10]
Neste caso, Calvino, ao tratar da justificação, contrapõe-se
a todos que tentam invalidar a morte de Cristo como obra expiatória para os
nossos pecados, assim, como a eficácia de Cristo em nos manter libertos do
pecado através da justificação pela fé somente. Ele faz uma refutação ao
pensamento papista do século XVI na insistência de adquirir uma justificação
pelas obras.[11] Com isso, Calvino trabalha em defesa da teologia paulina,
porque a teologia católica medieval replica os erros judaicos na insistência da
salvação pelas obras. Assim, ao tratar a questão das boas obras, ele ressalta
“que o ser humano caído não pode fazer o bem que Deus requer”.[12]Segundo ele,
as obras não apresentam nenhum mérito a Deus, porque todas as cousas se fizeram
inúteis para o Criador. Portanto, quer queira ou não, tudo se poluiu e se
corrompeu aos olhos de Deus. Calvino define esta questão em suas
Institutas da seguinte forma:
Além disso, irei mais longe: [se,] porventura, haja qualquer
obra que de nenhuma impureza ou imperfeição mereça ser argüida. E como haveria
[obra tal] diante desses olhos aos quais nem estrelas são suficientemente puras
[Jó. 25.5], nem anjos suficientemente justos? [Jó. 4.18]. Destarte, será [ele]
compelido a conceder que nenhuma boa obra exista que não haja sido poluída não
só de transgressões a si apostas, como também de sua própria corrupção, de
sorte que não tenha a honra de justiça.[13]
Calvino entende que só pela união em Cristo as nossas obras
são justificadas e passando assim a ter algum valor.
As boas obras no pensamento de Calvino são umas expressões
de gratidão para com Deus e através deste pensamento, Calvino ofereceu grandes
contribuições à teologia reformada ou calvinista. “A sua maior contribuição foi
as Institutas”[14] Sob sua liderança, “Genebra tornou-se uma inspiração e
um modelo aos de fé reformada de outros lugares em um refúgio para os
perseguidos por causa da fé reformada”.[15]
[1] CALVINO,
João. As Institutas, Vol. II, p. 102
[2] GERSTNER,
Dr, John H. Justificados pela Fé Somente. p.95. em Cláudio
Antônio Batista (editor).
[3] CALVINO,
APUDD. MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino, p. 193
[4] ARMSTRONG,
Dr. Jonh. op.cit., p. 101
[5] ARMSTRONG.
op. Cit., 102
[6] CALVINO,
João. Comentário à Sagrada Escritura Exposição de Romanos – p. 235
[7] CALVINO.
op.cit., Vol. II, p.11
[8] CALVINO.
op. cit., Vol. II, p. 07
[9] Idem,
Ibid, p.10
[10] CALVINO,
João . Comentário aos Gálatas. p. 78
[11] CALVINO. Institutas. Vol.
III, p. 261
[12] Idem,
p. 55
[13] Idem,
Ibid. p. 276
[14] CAIRNS,
E. Earle. O Cristianismo Através dos Séculos. p. 254
[15] Idem.
Referências Bibliograficas
CALVINO, J. As Institutas ou Tratado das
Religiões Cristãs. Tradução de Waldir Carvalho Luz. CEP S/C, Volume II São
Paulo, SP. 1982, 445 pp.
CALVINO, J. As Institutas ou Tratado das
Religiões Cristãs. Tradução de Waldir Carvalho Luz. CEP S/C, Volume III
São Paulo, SP. 1989, 727 pp.
CALVINO, J. Gálatas. Tradução Valter Graciano Martins.
São Paulo: Editora Edições Paracletos, 1998. 192pp
CAIRNS, Earle E. O Cristianismo Através dos Séculos –
Uma história da Igreja Cristã. Tradução Israel Belo Azevedo. 2ª ed. São Paulo: 1998.
328 pp.
Justificados pela Fé Somente. Trad. Hope Gordon. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 1995. 143 pp.
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